Sunday, February 11, 2007

Como Se Faz Um Monstro

Este documento foi elaborado na sequência da publicação do projecto de decreto-lei para consulta pública «Agência de Avaliação e Acreditação para a Garantia da Qualidade do Ensino Superior», em 2007/02/01. Os acontecimentos e anúncios que precederam a publicação, tinham já sido motivo para as maiores apreensões, agora confirmadas pela natureza do projecto de decreto-lei.

As dúvidas são de grande monta. O sector envolvido é crítico para a Nação Portuguesa. Os fundamentos não parecem assentar sobre nenhum conhecimento de alto nível. A estrutura desenvolve-se com enormes falhas éticas e deontológicas, enredada por uma malha ilusória, com a conhecida configuração de uma pirâmide.

Não é fácil confrontar, com tamanhas dúvidas, quem está deslumbrado pelo poder, pelo estatuto de privilégio e prerrogativas de quem governa. Há, no entanto, sempre um momento em que o ludibriado se vê obrigado a encarar a ânsia pelos resultados fáceis e imediatos. Uma reflexão séria, no momento certo, pode ser tudo o que é necessário para evitar tão penosa situação. Nada se ganha em aniquilar o mensageiro.

O projecto, ao mesmo tempo que reconhece o pressuposto da «adesão aos princípios internacionalmente aceites» isola-se no «ensino superior», «na matéria» e na especialização «neste domínio». Sobe depois ao pedestal de DOIS «documentos essenciais de nível europeu», ambos radicados na mesma origem: a ENQA.

A ENQA é uma associação de organismos de várias nacionalidades Europeias, da qual o membro Português é sócio fundador. As actividades das ENQA foram desenvolvidas desde a criação da entidade que a precedeu, em 2000, à revelia da International Standards Organization (ISO), European Committee for Standardization (CEN), European cooperation for Accreditation (EA), International Accreditation Forum (IAF), IQNet Association – The International Certification Network, Entidad Nacional de Acreditación (ENAC) e, em Portugal, do Sistema Português da Qualidade (SPQ), Instituto Português da Qualidade (IPQ), Instituto Português de Acreditação (IPAC), Organismos de Certificação Acreditados (OCA) de Sistemas de Gestão da Qualidade (EN 45012) do Sector de Actividade Económica (EA) Educação, Associação Portuguesa de Certificação (APCER), Certificação de Auditores, Normas Internacionais, Europeias e Portuguesas, Base de Dados Nacional de Sistemas de Gestão Certificados e da legislação em vigor, nomeadamente os Decretos-Lei 125/2004 de 31 de Maio e 140/2004 de 8 de Junho.

Esta ignorância ou arrogância em relação ao Sistema de Gestão da Qualidade é, talvez, mais uma manifestação atávica no ensino superior, contra a qual vêm lutando, ao longo da história da humanidade, todos os que se têm oposto ao privilégio hereditário e à discriminação. A própria designação de «superior» é disso, eventualmente, uma mensagem subliminar, que agora alguns tentam combater com a alternativa de «terciária», esta de efeito oposto. Infelizmente, nada há de superior, nem terciário, na ignorância, no obscurantismo, no comportamento retrógrado e reaccionário.

As consequências da ignorância de conhecimentos mínimos no domínio da Qualidade inquinam todo o projecto de decreto-lei:

1. a conveniência da passagem de um sistema essencialmente marcado pela auto-avaliação para um sistema caracterizado pela hetero-avaliação;

2. a iniciativa à abertura dos procedimentos de avaliação … deixa de pertencer prioritariamente aos estabelecimentos de ensino;

3. a responsabilidade pelos resultados da avaliação … seguem o carácter externo da iniciativa;

4. a criação de agências independentes de garantia da qualidade do ensino superior, com absoluta exterioridade quer face aos interesses dos estabelecimentos de ensino superior, quer face ao Governo;

5. a acreditação terá de depender, integralmente, da avaliação, no sentido de se fazer depender a criação ou o funcionamento de um estabelecimento de ensino superior ou de um ciclo de estudos no seu interior dos juízos acerca da qualidade científica e pedagógica dos mesmos;

6. o Governo entende instituir uma … Agência de Avaliação e Acreditação para a Garantia da Qualidade do Ensino;

7. organismo responsável pelos procedimentos de garantia da qualidade desse grau de ensino - nomeadamente os de avaliação e de acreditação;

8. organismo responsável … no contexto dos mesmos, pela inserção de Portugal no sistema europeu de garantia da qualidade do ensino;

9. organismo responsável … no contexto dos mesmos … pela genérica internacionalização das universidades e institutos superiores politécnicos portugueses;

10. o traço essencial deste organismo é a sua independência … evidenciada no … instituir uma pessoa colectiva de direito privado e substrato fundacional … sobre a qual o Estado exerce poderes … típicos de um instituidor;

11. a independência … evidencia-se também nas regras de designação, de composição, de funcionamento e de limitação de mandatos do conselho de administração, enquanto respectivo órgão principal;

12. os titulares [desse] conselho são nomeados por um conselho geral, na qualidade de órgão representativo do fundador-Estado;

13. entre pessoas com reconhecido mérito nas áreas científicas ou sectores de actividade relativamente aos quais as instituições avaliadas ministram e certificam conhecimentos;

14. a titularidade das suas funções é totalmente incompatível, no caso dos membros executivos, com a titularidade de outros cargos públicos ou com qualquer efectividade de funções em instituições avaliadas, assim se evitando que as decisões do conselho de administração reflictam interesses particulares ou políticos alheios à garantia da qualidade;

15. os interesses envolvidos na garantia da qualidade do ensino superior [são] largamente representados num conselho consultivo, de composição muito alargada, representativa de todos eles, com importante função consultiva sobre matérias gerais;

16. um conselho de revisão, com competência para apreciar os recursos de mérito das decisões do conselho de administração;

17. um conselho de revisão … integrado … por membros dotados de estrita independência, em virtude dos seus modos de designação e estatuto;

18. um fiscal único;

19. algumas normas de procedimento sobre a avaliação e acreditação;

20. avultando … a competência regulamentar do conselho de administração … em matéria de definição dos trâmites pormenorizados a que há-de obedecer a actividade de garantia da qualidade do ensino.

Estas questões podem ser objecto de pontos de vista divergentes, mas, em qualquer caso, não se pode fazer tábua rasa do estado da arte do conhecimento científico sobre Qualidade. O risco é assistir-se a «Como se faz um monstro», mas, sobre isso, já escreveu, magnificamente, Guerra Junqueiro, que conclui:

«É abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira
A marca industrial do fabricante — um zero!»

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