Tuesday, June 26, 2007

Administração

Só não acaba com ela [uma medida financeira] a administração que não pode, não sabe ou não tem honra para adminstrar os negócios públicos!...

José Estevão - Sessão de 1852/01/08. In «O Portal da História - Discurso do mês: José Estevão».

Aristocracia

[Esse país] foi, como dissemos, fortemente centralizad[o]: mas logo os senhores e os campónios se ligaram ali contra o poder, que andaram expulsando sucessivamente de todas as suas posições; [no outro país], pelo contrário, o homem do povo foi o aliado da realeza contra os nobres, e estes, abstendo-se de dirigir a política local, de agricultar as terras, de viver nelas, de proteger o povo, procuraram riqueza e preeminência nas funções de corte e de aparato, tomando o impróvido papel de parasitas sociais. Deixou de haver, portanto, uma aristocracia verdadeira (uma elite política e social que chefiasse a valer a gente rústica para bem e elevação da mesma gente) não escrava dos senhores do Estado: e ai do povo que não a tem!

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Monday, June 25, 2007

Banco de Portugal

[A Oliveira Martins]

Vale de Lobos, Fevereiro de 1877.

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Bem pode crer que não tenho, sobretudo aqui, nem meios, nem paciência, nem tempo para estudar, nem os factos relativos aos estabelecimentos do Porto, nem as propostas do governo sobre a organização do chamado crédito nacional. Do folheto do meu amigo, o que infiro é que esses banquistas daí são uma alcateia de traficantes e burlões, e que o governo quer o monopólio da coisa para uns amigos seus de Lisboa, que vão tratando da vida, mas com quem o governo se acha, nos apertos trazidos por despesas, tantas vezes, posto que nem sempre, irreflectidas ou insensatas. As façanhas e cavalaria dos banqueiros do Porto resultam claramente do seu folheto: as do governo são inferências que dele tira a minha danada má-fé.
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O Governo quer tutelar directamente o especulador inepto, o desleixado, o gastador, o tolo que aceita a ordem à vista, a nota promissória dos trapaceiros do Porto. Recorre para isso ao monopólio do crédito, que rodeia de umas garantias que não estudo, nem leio, porque seria inepto estar a degustar o açúcar com que é condimentado o absurdo e a expoliação.
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Do que levo dito já vê o meu amigo que eu acho tanta razão à liberdade por privilégio que tinham certos bancos do Porto de emitir notas, como os intuitos do Governo de monopolizar esse privilégio, no banco nacional, que já me roubou 60 por cento nas suas notas com curso forçado, e que remediou tudo passando a chamar-se, em vez de Banco de Lisboa, Banco de Portugal.
...

Alexandre Herculano - Cartas a Oliveira Martins. In «Cartas». 5.ª ed. t. I, p. 234-246.

Burocratismo

A própria educação «latina» nos promove a psique do tutelado, causa verdadeira do centralismo. O temperamento da nossa elite, que se revela em Tubaronismo nas facções políticas, manifesta-se em Sebentismo na educação. Como todos sonham com a burocracia (a da farda – valha-nos Deus! – e a da manga-de-alpaca), o Estado estabelece a selecção por meio de exames e de concursos, teias de aranha para a empenhoca: donde resulta que a escola pública, com o seu programa, visa a atulhar o capa-e-batina como um armazém de bacalhoeiro, desprezando o carácter e a iniciativa: a última, aliás, incombinável com este sistema, porque a mesa da secretária convém sobretudo aos que a não possuem. A chamada educação «jesuítica» (memória e obediência) é justamente a burocrática, e não dura (como dizem) por culpa eterna dos jesuítas, mas por obra e graça do burocratismo: é a educação para um povo de funcionários, fardados e não fardados.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Sunday, June 24, 2007

Carácter

De um tal estado de falta de coordenação das acções pelas ideias provém o espectáculo de uma sociedade confusa, onde a mediocridade e a insensatez vão de braço dado caminhando às cegas numa estrada sempre deprimente dos caracteres.

Talvez em parte alguma da Europa estas consequências do individualismo sejam tão visíveis como em Portugal, por isso mesmo que entre nós a extenuação das forças vivas da sociedade chegou a ponto de destruir inteiramente as antigas instituições e ideias. País nenhum da Europa é, com efeito, neste sentido, mais liberal: se até o clero entre nós é progressista! Mas também por isso, acaso em parte alguma se encontrará tanta pobreza de gente, tanta escassez de carácter. As classes conservadoras, cépticas, vivendo numa apatia moral entorpecedora de dignidade e até da inteligência, ficam pardas, banais e mesquinhas. Os revolucionários, sem a boa disciplina de inimigos pujantes e sábios, baixam igualmente, apresentando, nas extravagâncias dos seus actos, a desorientação dos seus pensamentos, o vazio dos cérebros, e uma virulência que demonstra a ausência de verdadeira força, quando não demonstra a ausência de verdadeira força, quando não demonstra igualmente a inferioridade dos caracteres.

Oliveira Martins - Advertência a «Portugal Contemporâneo» (1881). 7.ª ed. Lisboa: 1953. p. 30-38.

Cidadãos

… não imputar a superioridade de qualquer nação à superioridade dos seus governos, mas à superioridade das suas elites e às energias criadoras da sua Grei. Se os parlamentares [doutro país] não são como os nossos pais-da-pátria, a sua capacidade para tutelar um povo não é por isso muito maior: os negócios de uma nação não cabem na pasta de um ministro, nem no tinteiro de um legiferante: o povo [desse país] não sobreleva pelo valor dos seus políticos, mas pela têmpera dos seus produtores, dos seus cidadãos. … Aí estão graníticas realidades, incriáveis à força de papelada, e absolutamente imprescritíveis por qualquer forma de legislação.

Mas há outra ideia a recomendar aos nosso confortáveis compatriotas, amigos da tutela e do palavreado: e é que não só a superioridade do [cidadão desse país] não procedeu da dos governantes, senão que ele próprio a foi roborando pela restrição activa e quotidiana da esfera de acção dos donos do Estado. … Longe de lhe pedir qualquer auxílio, o [cidadão desse país] de raça mais pacato tende a ver no Estado um inimigo, e é um revolucionário ordeiro de todos os dias; mas o nosso revolucionário, por via de regra, é um pretendente a ditador. Não são bons políticos o que mais nos falta: do que se carece em Portugal é de verdadeiros cidadãos, de um povo capaz de se organizar a si, de exigir dos tribunos ideias nítidas, soluções concretas.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Estado Comatoso

Estado comatoso é o de um adormecimento em que o doente cai desde que deixa de sofrer as excitações vitais. Essas excitações na sociedade são o amor público e o amor privado; o primeiro traduzindo-se pelos sentimentos da pátria, da humanidade, que se reflectem na política; e o segundo pelos da liberdade e de trabalho que se reflectem na família. O coma diagnostica-se experimentalmente numa sociedade pelos princípios práticos sobre que ela assenta, princípios que a toda a hora ouvirás, leitor, e que nem já te chocam, tão comuns são. Para que hei-de tomar sobre os ombros o peso da família se o grémio, o café e o prostíbulo me substituem, vantajosamente, o salão, a casa de jantar e o quarto de dormir? Para que hei-de matar-me a trabalhar, se um emprego se sou modesto, a política se possuo o quid, ou a agiotagem hão-de dar-me uma sorte grande? Que se importa comigo a pátria? Pois eu importo-me outro tanto com ela! Além disso é de homem sério, respectable, à inglesa, não se meter em política: arranjem isso como quiserem!

Eis aí os sintomas do estado comatoso na sociedade. Esse estado que dá com ela nas mãos dos condottieri da política e da agiotagem é o nosso. Nesse estado todas as revoluções são possíveis e fáceis. Os princípios dão-nos, não direi já a força bruta, porque essa época passou, mas sim uma coisa superficial e factícia, que se faz, se labora, alta noite nos conciliábulos das redacções e que se chama cinicamente opinião pública. Opinião do que dorme! Se amanhã o movimento reaccionário-jesuíta, o republicano individualista, o comunista mesmo, adquirissem entre nós uma certa preponderância, crês tu, leitor, que verias emigrar a flor dos nossos homens públicos?

Oliveira Martins - Portugal e o Socialismo. Lisboa: Guimarães, 1873.

Competência

Os defeitos da nossa organização como povo resumem-se em a grei não ser achada na governação; e a governação não conhecer, ou fingir não conhecer, os factores do ressurgimento nacional. As clientelas políticas, novas e antigas, têm afastado sistematicamente os problemas da valorização rápida e eficaz do Povo, e o homem competente do lugar que lhe compete; e em grande parte tem anulado a possibilidade de haver homens de competência moral e intelectual para a governação, pela preocupação constante de arredar vontades e de amesquinhar esforços de civismo para que a mediocridade trepe, quando não pela péssima educação política que sistematicamente amesquinhou, comprando e esterilizando toda a mocidade de algumas gerações a esta parte.

Ezequiel de Campos – A Conservação da Riqueza Nacional. Porto: 1913.

Incompetência

O tema da competência/incompetência já levantado – pelos Republicanos? – durante a Monarquia, vai tornar-se, sob o novo regime, um dos temas mais batidos, e mais falsos evidentemente, mostrando a crise das classes dirigentes, incapazes de produzir um corpo político tecnicamente adequado às tarefas. O editorial do número 1 da Seara Nova, para o qual Ezequiel deve ter contribuído, dizia em substância, em 1921: «O problema de Portugal é que não tem uma elite competente, nem uma opinião pública que apoie as reformas a fazer pela elite, etc. …» Em meados dos anos 20, a crise de «competência» atinge o auge, desembocando na liquidação final do parlamentarismo.

Manuel Villaverde Cabral – Materiais para a História da Questão Agrária em Portugal – Séc. XIX e XX. Porto: Inova, 1974.

Condecorações

Tais são, Senhor [Rei D. Luís I], os selvagens súbditos, de que uns exemplares figuraram com os seus fatos de flanela branca e o seu gorro vermelho na procissão camoniana. O mais célebre dentre eles é o Maio, que ao lado de V. M. foi condecorado pela Humanitária do Porto.

Ora as condecorações, Senhor, são como as esmolas e os discursos: não se lhes exagere o valor! Estão no seu lugar como consagração ou complemento das coisas, mas tornam-se um escárnio, até uma indignidade, quando se quer com elas evitar o cumprimento dos deveres. Condecorar o poveiro que tem salvado tantos náufragos sem dar um passo para evitar a causa dos naufrágios, é um proceder que nem a justiça, nem o bom senso mais elementar aprovam.

Não basta que ao peito de Maio se pendure a medalha de honra, nem que se dêem vinte mil réis ao Sérgio: é necessário que na praia da Póvoa se construam os molhes de abrigo – exactamente para não haver mais náufragos a salvar, nem mais heróis a enobrecer. V. M. não quer decerto que as vítimas do mar sejam o preço dos tropos oficiais e das «festas de caridade», espectáculos humanitários em que se deleita a hipocrisia nossa contemporânea.

Oliveira Martins - Requerimento dos Poveiros. In «Política e Economia Nacional». 2.ª ed. 1885. p. 195 – 205.

Conta-Corrente

Façam-se grandes caminhos-de-ferro, atendam-se os clamores das grandes cidades, mas oiçam-se algumas vezes as vozes dos humildes e dos pequenos. A Póvoa necessita um porto. E isso que os poveiros não podem pedir, porque não lhes ensinaram a falar, não é um favor, é uma dívida. Na sua conta-corrente com o Estado, eles dão tudo e recebem nada. Porque não se lhes restituirá o valor de cinco ou seis anos do imposto do pescado, fazendo-se-lhes o porto que não custa mais do que uma centena de contos?

Cem contos, eis aí o orçamento da obra já estudada, mas que dorme o sono plácido burocrático, destino dos projectos que não interessam aos poderosos. Cem contos, Senhor [Rei D. Luís I], não correspondem a mais do que a Póvoa dá de imposto em cinco ou seis anos. Cem contos, a seis por cento, amortizáveis em 60 anos, não custam mais do que réis 6 187$563 ao ano, isto é muito menos de metade do que o imposto do pescado produz cada ano.

É simples, é justo, é fácil – não é assim? Porque se não realiza, pois?

Porque eles, pobres pescadores, não podem, nem sabem fazer conluios, nem unir-se resolutamente no dia dos votos e vendê-los à boca da urna. Este processo, com que na civilização se repete o processo dos bandoleiros, é o único meio de obter no vosso Reino aquilo a que se tem direito, e até aquilo a que se não tem jus.

São contudo, mais de quatro mil súbditos vossos; contribuem para a produção anual do Reino com 300 ou 400 contos da riqueza líquida, positivamente arrancada do seio das ondas à custa de trabalhos e mortes. Alimentam entre mulheres e filhos mais de outras tantas pessoas: alimentam é um modo de dizer, porque de Inverno passam fomes com as bravezas do mar. Comem com eles à mesa, cerceando-lhes a colheita das redes, a Senhora da Lapa, as vareiras, e o fisco. Dão por ano ao vosso Tesouro o melhor de 15 contos de réis – uns 5 ou 6 por cento do produto bruto de uma indústria em que o trabalho é tudo; uns 5 ou 6 por cento roubados ao pão de cada dia.

Dão 15 contos por ano ao vosso Tesouro, e custam nada, coisa alguma recebem do vosso Governo. E isto dura assim, anos após anos; e os Invernos vêm e os Verões passam, e o mar ruge e os barcos voltam-se, e as mulheres desgrenhadas choram, e os homens caem no fundo do mar, afogando-se – caem como as gotas de água, pesadas e vagarosas, antes da tempestade! O poveiro, Senhor, nada sabe, por isso nada exige; não há que temer daí as trovoadas sociais! Por isso mesmo ninguém o ouve; por isso mesmo ninguém lhe paga uma parte sequer da dívida enorme da Nação para com ele.

Oliveira Martins - Requerimento dos Poveiros. In «Política e Economia Nacional». 2.ª ed., 1885. p. 195–205.

Contradição

Contradição estranha! A delegação tornou-se tirania: o sufrágio universal converteu-se numa arma de dois gumes com que o povo, brandindo-a, se fere, e tanto mais se fere quanto mais valente é o braço que a brande. O divórcio entre o governo e a nação sucede rápido. Ele, armado com o seu direito, a delegação, quer ser obedecido e faz-se em todo o caso temido: ela, armada com a sua liberdade, acusa o governo de traição e tirania, …

Antero de Quental - Portugal Perante a Revolução de Espanha. In «Prosas». t. II, p. 59–66.

Convencer

… no meio de muitas observações e apreciações novas e exactas que encerravam, pecavam não raro pelo que pecam muitos escritos do nosso tempo: pelo cum hoc, ergo propter hoc. Este sofisma, a maior parte das vezes involuntário, e a confusão da retórica com a dialéctica, da metáfora com o silogismo, parecem-me ser os dois vícios que hoje mais transviam os entendimentos. O último, sobretudo, é inevitável nas épocas de discussão oral, como a nossa, em que tantas vezes é necessário conciliar a opinião das maiorias. É mais fácil comover e deslumbrar os espíritos vulgares do que convencê-los. Em geral, nas questões públicas, as paixões são auxílios mais eficazes, para obter os fins, do que o raciocínio.

Alexandre Herculano - Cartas. 5.ª ed. t. I, p. 207–219.

Saturday, June 23, 2007

Demagogia

No caminho em que nos puseram aqueles por quem nos temos deixado conduzir, nós não vamos livremente para a escolha da forma de um governo livre; vamos submissamente para a sujeição voluntária dos domínios despóticos. Para que esses poderes nos subjuguem basta simplesmente que nos invada a anarquia que nos bate à porta. Na perturbação geral, no conflito, no perigo da fazenda e da vida, o egoísmo sacrificará sem nenhuma disputa a liberdade. Porque a liberdade, por mais bela que ela seja, é na existência uma circunstância; a ordem é a condição essencial – intrínseca – da vida, garantia do trabalho e a segurança do pão. Quem poderá calcular o número de liberdades que nós sacrificaremos à ordem no momento em que a desordem começar a facultar-nos o direito ao governo, com a supressão do direito ao jantar?... É das profundidades demagógicas que saem sempre à periferia social os tiranos. Já Aristóteles dizia que o déspota começa no demagogo.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Democracia I

Honra a quem melhor souber ensinar a virtude, distribuir a ciência e a riqueza, entre um povo infeliz, digno de melhor sorte. Trata dele e vê-lo-eis crescer e medrar – até ao dia em que dispense a tutela historicamente indispensável de classes privilegiadas, militares ou industriais, aristocráticas ou burguesas. Então a democracia será uma verdade e não uma ficção; a liberdade um facto, não uma fórmula; a sociedade uma harmonia, e não um caos. Mas, ai dos que não tiverem olhos para ver! Porque a marcha dos tempos, o andar das coisas não param; e se em vez de educar, seguirem destruindo; se em vez de proteger, explorarem o povo as classes que agora o dirigem, a democracia nem por isso deixará de vir. Mas virá com um brandão incendiário, um grito de guerra, uma foice, um chuço, um machado, vingar-se de quem não soube cumprir o seu dever. Assim faziam na Idade Média os jacques aos senhores nos seus castelos; e por honra do nosso século os novos barões deveriam mostrar pelo menos uma inteligência mais perspicaz, se não podem dar provas de uma virtude maior.

Oliveira Martins - Advertência a «Portugal Contemporâneo» (1881). 7.ª ed. Lisboa: 1953. p. 30-38.

Democracia II

O que é que explica, porém, que a Democracia apareça como a expressão da vontade maioritária – e a tal ponto que este conceito haja chegado a substituir-se inteiramente ao conceito originário, à ideia central da democracia, e a fazer esquecer que esta reside essencialmente na liberdade?

A explicação está em que se toma a parte pelo todo, uma aplicação necessariamente imperfeita pelo essencial princípio, reduzindo ao sufrágio, arbitrariamente, todo o mundo de relações jurídicas entre o indivíduo e o Estado. Na realidade tem-se tendência a ver apenas em exercício a democracia no momento da elaboração dessas regras jurídicas, e portanto a considerá-la exclusivamente como uma forma de elaboração dessas regras, quando na verdade a Democracia é o espírito vivo de todo o direito, a alma de todo o Estado. A Democracia é, com efeito, muito mais do que uma forma de sufrágio, uma maneira particularíssima de conceber as relações entre o indivíduo e a colectividade.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Descentralização I

Contribuição para o Plano Nacional de Leitura.

Ler:

Alexandre Herculano - A Descentralização É a Condição Impreterível da Administração do País pelo País. 1858.

Descentralização II

Com efeito, se a fecundidade interna que aí vemos, e o esforço constante de iniciativa que faz progredir a Sociedade, leva a desdenhar as mutações de cenário em que se deleita a fantasia dos sentimentais, estes (dos quais somos, os Portugueses), incapazes de se moverem realmente, amam muito a mobilidade nos simples aspectos das instituições, como quando vamos ao cinematógrafo para ter a ilusão das grandes viagens das grandes viagens, da actividade, do movimento, sem trabalho algum da nossa parte e muito bem sentados numa poltrona. O meridional pseudoculto (crédulo em que de abstracções e constituições pode chover um maná de bem-aventuranças, de riquezas, de liberdades, as quais não tenhamos de conquistar pelo nosso esforço quotidiano) há-de rejeitar a solução que os factos citados nos apontam para o problema que nos propusemos, a saber: a descentralização, na sua essência, não é uma forma ou modalidade do direito administrativo: é uma reacção psicológica; por isso não golfa mecanicamente de uma reforma administrativa, mas pode gerar-se organicamente por um sistema de educação.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Descentralizar

Procure adquirir cada cidadão português uma noção geral da maneira prática de darmos ao país da realidade o lugar que lhe compete; procure governar a sua vida económica por meio de instituições cooperativas; procure compreender alguma coisa dos interesses económicos da sua terra, de como esses interesses tomarão corpo nas cooperativas e nos sindicatos, de como os grupos desses interesses se organizarão no município, e os interesses provinciais nas assembleias provinciais nas assembleias provinciais, que devem ser corpos legislativos com larga alçada administrativa, sobretudo pelo que respeita às finanças e à economia. A base deste regionalismo não são as diferenças de tradições (se bem que as não desprezemos, como auxiliares), mas dessemelhanças que promanam de condições económicas diversas. Criem-se em suma as elites locais, capazes de dirigir com espírito largo os negócios concretos da região, de civilizar o povo com quem estão em contacto e de inspirar as decisões do governo central; e o estado, ao mesmo tempo, que chame as associações a colaborar com ele. Para suscitar as elites locais, cumpre reformarmos por completo a escola, introduzir nela a autonomia escolar (instrução cívica pelo self-government), a educação intelectual pela iniciativa do aluno e o trabalho produtivo em comunidade (ou cooperativa), …

Tudo isto significa, em resumo, descentralizar - mas descentralizar … pelo espírito. O espírito é tudo. Não curemos de obter o efeito - só por meio de reformas legislativas, políticas e formais. Se descentralizássemos no código, sem cuidar de descentralizar nas almas, - ou sucederia novo fracasso, como em 1878, ou adicionaríamos ao grande Estado outros estadinhos omnipotentes, com seus ódios de campanário e com a mesma espécie de banditismo que se manifesta nos largos bandos Enquanto à maioria da gente honesta faltasse a perseverança e organização cívica para regerem os negócios da vida comum, havia de tripodiar no município a mesma casta de habilidosos que domina a política do grande Estado.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Direitos

É aqui ocasião de dizer ser para mim uma noção fundamental a da hierarquia dos direitos, pois julgo absurdo colocar no mesmo plano o direito que possuo de seguir por um lado da rua e o que tenho ou devo ter, de defender os meus ideais. Um grau mais elevado, dentro dessa hierarquia, deve, pois ser reconhecido desde logo aos direitos espirituais (religiosos, filosóficos, científicos, etc.), que importam infinitamente mais, tanto sob o ponto de vista da dignidade do homem como do valor social, que qualquer direito de natureza material. Ocupa ainda um grau superior nessa hierarquia o direito de falar e de escrever livremente sobre as coisas públicas. É um direito este que, se deixasse de ser exercido, viciaria o mecanismo mesmo da vida política, o funcionamento normal do Estado. É um direito que é, ao mesmo tempo, uma função. O mesmo não acontece, por exemplo, com o direito que tenho de fumar ou de beber; nenhuma função essencial da vida do estado seria lesada ou impedida pela falta de exercício desse direito. É evidente que esta hierarquia dos direitos não coincide com a das associações comerciais – nem com a dos taberneiros.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Friday, June 22, 2007

Educação Secular

Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase que se equivalem. Se a velha monarquia desapareceu, conservou-se o velho espírito monárquico: é quanto basta para não estarmos muito melhor do que nossos avós. Finalmente, do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos duma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas!

Antero de Quental - Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos. Lisboa: 1871.

Eleição

... oxalá não houvesse um só cargo electivo enquanto a eleição fosse uma mentira e uma injúria!, injúria tanto para os que diante da urna arremedam votar, lançando listas que não leram, como para aqueles sobre quem tais escolhas recaem, como para quem, no fundo de espeluncas, fabricou a seu bel-prazer essa expressão de uma vontade popular que não existe.

António Feliciano de Castilho - Felicidade pela Agricultura. 2.ª ed. 1903. Vol. I, p. 77-83.

Finalidade do Estado

Nada mais necessário assim do que definir o que é, para [a Democracia] a finalidade do estado, porque um estado que não conhece a sua finalidade, desconhece os seus limites, e está, portanto, apto para exercer todas as formas de tirania.

Equivale isto a reconhecer que é preciso proclamar com toda a energia que nunca um verdadeiro democrata pode reconhecer ao estado qualquer poder absoluto sobre o indivíduo. O que é o estado para ele, efectivamente, senão um instrumento destinado a permitir ao indivíduo uma vida verdadeiramente livre e digna do homem? A Democracia visa a servir o indivíduo e não a oprimi-lo. Por isso é legítimo dizer que ela mergulha as suas mais fortes raízes nas tendências espirituais e individualistas que caracterizam verdadeiramente o cristianismo. Se os seus partidários se não desinteressam da força do Estado, é porque um mínimo de força e de autoridade da sua parte lhes parece condição essencial para que cada homem reconheça a existência dum limite ao seu direito no direito dos outros e respeite as condições da reciprocidade.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Thursday, June 21, 2007

Força

A licença mata a liberdade; porque se livremente oprimes, livremente podes ser opresso; se o assassínio é teu direito, será para os outros assassinar-te.

Se a força, e não a moral, é a lei popular, quando os tiranos tiverem mais força, legitimamente podem pôr no colo do povo um jugo de ferro.

Alexandre Herculano - A Voz do Profeta. In «Opúsculos». 7.ª ed. I, p. 43-46.

Futuro

A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera ...

Raul Brandão - Memórias. I, p. 17.

Wednesday, June 20, 2007

Geração Nova

Estes homens chamados liberais, que nos têm roubado, malgovernado, ludibriado, traído, quem os viu nascer, quem os educou, quem os fez homens públicos? Foi o governo liberal que criou essa alcateia de velhacos e salteadores? É muito moderno para isso. Longe de nós citar nomes. Mas se os pudéssemos citar vê-los-íeis aprovados em costumes e ciência pela vossa velha universidade, despachados pelo vosso desembargo do paço, empregados pelos vossos ministros e pela vossa regência nos cargos de administração e fazenda; promovidos aos postos militares pela vossa corte beata; recompensados com distinções honoríficas e lucrativas pelos vossos virtuosos e pios governos. Que tem a geração nova, fervorosa nas suas crenças, ardente nas suas esperanças, pundonorosa nos seus sentimentos, com essas fezes que ainda escorrem sobre nós, da sentina do absolutismo?

Alexandre Herculano - O País e a Nação (1851). «Opúsculos: Questões Públicas». 3.ª ed. IV, p. 91-110.

Bom Governo

Comovido pelos sintomas de decadência da sociedade em que vive, contristado do predomínio, mais ou menos geral e abusivo, da ignorância ou da maldade, do servilismo ou da tirania, da miséria ou da opulência, o autor procurou averiguar as causas destes fenómenos, e viu que elas, estranhas pela maior parte aos indivíduos, consistiam na falta de um bom governo.

J. F. Henriques Nogueira - Estudos sobre a Reforma em Portugal. Lisboa: 1851. p. VIII-XIV.

Forma de Governo

Para nós também é relativamente indiferente a forma aparente e exterior que o governo adquire, sempre que ela corresponda à época evolutiva em que existe; mas é-nos essencialmente importante que essa forma seja em si a forma íntima, a verdadeira expressão da sociedade, e não o manto exterior que cobre a oligarquia. A nossa antipatia é portanto íntima, orgânica, irremediável.

Oliveira Martins - Portugal e o Socialismo. Lisboa: Guimarães, 1873.

Governos

Em todas as velhas sociedades os governos são, por essa razão, inimigos natos do progresso. A evolução progressiva da humanidade realiza-se, a despeito deles, pela elaboração irresistível das ideias fora da esfera oficial, sob a acção das descobertas da ciência ou das sugestões da arte. O mais que fazem os governos é submeterem-se às transformações sociais que a solução de cada novo problema resolvido pela ciência impõe à existência dos povos. Os governos, portanto, sempre que uma forte efervescência intelectual não agita a sociedade e os não abala constantemente na eminência do seu posto, forçando-os a concessões sucessivas, tendem ao retrocesso.

Era Uma Vez Um Velho Burro. In A Situação Política. «As Farpas». 1877. IV, p. 37–43.

Monday, June 18, 2007

Iguais

O liberalismo de Herculano apela não para uma sociedade de iguais, mas para uma sociedade em que a desigualdade natural dos homens nem tolha o caminho dos melhores, nem impeça que o número dos melhores seja cada vez maior.

Joel Serrão - Antologia do Pensamento Político Português/1: Liberalismo, Socialismo, Republicanismo. Porto: Editorial Inova, 1970. p. 21.

Importação

Se … a livre concorrência não basta e a organização social é necessária (mas feita pelo povo, e não pelo Estado), erro maior é esperar tudo dos homens políticos e dos poderes públicos. Não quadra a todos remédio idêntico; uns precisam de esporada, e de freio outros; e o desejo de equilibrar, organizar, moralizar as energias de produção, não deve apagar do nosso espírito a necessidade de cuidar de que elas vivam, - e não só que vivam, mas sejam fortes. A terceira geração romântica (1870-90), ao trazer para o nosso país a reacção ao liberalismo, deveria ter visto se o que tínhamos cá era aquele originário «liberalismo» (aquele «liberalismo» de produtores, e não só de especuladores, como foi o nosso), o qual suscitara no estrangeiro aquelas doutrinas antagonistas, que corrigiam os seus excessos... Mais um exemplo da importação de doutrinas e conclusões, inspiradas entre os grandes povos nos factos sociais desses mesmos povos, - em vez da importação de métodos de trabalho, que directamente aplicássemos à matéria portuguesa…

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Indiferença

O nosso profundo mal está na nossa profunda indiferença. Aos que ignoram os perigos desta enfermidade social lembraremos que quando Napoleão desembarcou no golfo Juan não foi a força dos que o defendiam que o reconduziu ao trono, foi a inércia dos que o não atacaram.

Ora as apatias, querido leitor sensato, curam-se pelos processos reconstituintes. Os meios revulsivos agravam a prostração e produzem o desfalecimento e a morte

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Sunday, June 17, 2007

Juízes

Se muito se ilude, como dizemos, quem adscreva a hegemonia do povo [desse país] às excelências dos seus governos e dos políticos e legiferantes, não menos se enganam, por outro lado, aqueles que lhe atribuem a superstição da lei, obra dos ditos legiferantes. Não confundamos com tal superstição um sólido sentimento da legalidade, da disciplina íntima, da ordem justa, que se pode aliar (e que se alia) a nenhuma superstição da lei escrita. A letra mata, o espírito vivifica. Acentua bem um escritor francês que não há país como [esse país] onde se vejam os próprios juízes – os homens justos – criticarem a lei com mais ironia, ridicularizarem-na com mais humorismo, e isto do alto da sua tribuna e na presença dos litigantes; onde tantas prescrições e regulamentos fossem condenados ao desuso pela oposição dos indivíduos, oposição que a autoridade renuncia a reprimir; onde os próprios tribunais se arvorem, como [nesse país], em cúmplices da resistência e em censores da legislação. «Honra aos que por amor da justiça vestiram o uniforme de transgressores da lei!»: foi um característico [cidadão desse país] o ilustre lorde que escreveu isto. «A lei em França» (torno ao escritor que atrás indico) «ostenta elevação de tom, solenidade de forma, e, por assim dizer, uma fé segura e tranquila no seu direito a ser obedecida; mas [nesse país] as atitudes são precisamente as opostas: o legislador mostra-se ali como duvidoso de si mesmo, e perfeitamente compenetrado do carácter suspeito da sua obra. A lei francesa é imperativa; ela ordena, ela impõe; a [desse país] é não raro facultativa: propõe um sistema, que o indivíduo seguirá ou não, segundo for o seu juízo» (não porém o seu capricho). «A lei em França é votada por um tempo indefinido, e apresenta-se sempre como uma solução; [nesse país] é votada, muitas vezes, por um período limitado, e dá-se humildemente como um ensaio». É claro que esta fraqueza da disciplina externa, da lei escrita, se compensa pela força da disciplina interna, das «leis não escritas» de que fala a Antígona, do esforço espiritual de concentração. Pouco importa a respeitabilidade da lei, se estamos garantidos da do juiz. Todos se fiam dos juízes, no liberal [país]; e quem se fia dos juízes – entre nós?

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Juízo Final

A vida mofificou-se nos últimos vinte anos, primeiro com lentidão e, depois da guerra, num tropel que mete medo. Ninguém pensa hoje como ontem. Por último – já reparaste? – até as fisionomias se transformaram... Eu sou do tempo em que ser rico não era uma afronta para os pobres. A posse era um cargo às vezes pesado. Dizia-se – pobrete e alegrete; hoje, só se é pobre com desespero. Na província que conheço, as palavras senhorio e fidalgo tinham quase a mesma significação. Muitos senhorios viviam com os caseiros e quase como ficação. Muitos senhorios viviam com os caseiros e quase como eles. [...]

As classes não estavam tão divididas. Hoje o rico desconhece o pobre. [...] O pobre não tinha visto muita gente, e da pior, enriquecer de repente. [...]

Onde vão as existências, interiores e recolhidas, que cumpriam religiosamente a vida? Desapareceram há anos ou há séculos? Só uma direcriz se marca cada vez mais fundo – enriquecer e gozar. Enriquecer seja como for e gastar à larga, venha donde vier.

A vida de família, como nós a compreedemos, já se transformou. A família dissolve-se. Um professor de Lisboa, falando-me dos rapazes que andam agora nas escolas, disse: - Os rapazes ainda lá iam... mas não encontram amparo nenhum em casa, nem no pai, nem na mãe, nem nos tios. É tudo a mesma mixórdia.

[...]

Num espaço de quinhentos metros, pelo princípio da Avenida, há vinte, trinta casas de jogo toda a noite abertas. Alguém calculou que o número de prostitutas, na capital , era de vinte mil. E as outras? as piores? Os teatros transbordam, o dinheiro perdeu o valor (1921 – 1922). Todos caminhamos com febre – a febre de quem não confia no dia de amanhã. O dia de amanhã talvez não exista; o que existe são as grandes oligarquias políticas, económicas e financeiras; os grandes negócios, as grandes casas bancárias, onde através das redes de arame doirado o papel corre e transborda. Toda a gente enriquece de um dia para o outro e toda a gente gasta, gasta, gasta. Aqui há tempos correu notícia de bancarrota. Houve um pânico e as ourivesarias foram assaltadas para se empregar o papel em jóias. O jogo tomou uma importância capital nesta sociedade que se dissolve – a vida é uma roleta. [...] Cada qual é ainda um ser razoável, que discute e aponta o perigo, mas todos juntos resvalamos para o fundo como cegos.

[...] Um professor da Universidade, meu amigo, foi a bordo de um paquete despedir-se dum rapaz porquem se interessava [...], e disse-lhe com um sorriso irónico: - Enriquece, sobretudo enriquece ...seja como for... contando que se não venha a saber. Disse-o com ironia, mas todos nós sabemos o que esta ironia pesa e o que vale a experiência da vida... – Contanto que se não saiba. De resto, o exemplo vem de cima, vem das classes chamadas superiores, que enriquecem sabe Deus como. O grande comerciante P. ganhou este ano (1921) cinco a seis mil contos de réis. Foi ele quem deitou a perder um pobre tabelião provinciano, a quem aconselhou que rasgasse as folhas dum testamento... [...] O importante é fazerem-se negócios, mais negócios, muitos negócios. [...]

Pede-se um governo, um plano, uma força – homens implorando aos manequins que os salvem! São os políticos muitas vezes que pregam contra o jogo no parlamento, que vão à noite deitar os dados na roleta. O R., que eu conheci há dez anos estudante pobre, roda hoje num automóvel como um carro de guerra; aquele médico de província pobre, e com uma família pobre, ganha hoje (1920), sessenta contos por ano como comissário do governo em qualquer banco. O filho deste republicano histórico fez uma fortuna na[...], de tal maneira escandalosa que não pode lá voltar. Apontam-se a dedo políticos que ganharam muitas centenas de contos com negócios de arroz e de açucar. Fulano, outro dia ministro e a quem o pai deixou no Ribatejo uma pequena herdade que ele tem aumentado com terrenos à roda, campo hoje, campo amanhã, deu há dias um jantar na sua aldeia aos amigos. Festa rija, brindes, até que chegou a vez ao caseiro, brusco e ingénuo, que, de copo em punho, disse: - Senhor doutor, à sua saúde! E o que lhe digo, senhor doutor, é que é pena que Vossa Senhoria não continuasse por mais algum tempo ministro – porque acabava por comprar toda a freguesia!

[...] Aqui há tempos, as galerias atiraram moedas de cobre sobre os deputados, gritando-lhes: - Parasitas! parasitas! [...]

Mas as classes superiores? A justiça? Conheço dez, vinte casos cuja fortuna assenta numa primitiva infâmia. Conheço mil pobres com uma vida digna de que ninguém fez caso. O rico explora o desgraçado, já não há homem nenhum que não se sinta afrontado e que no íntimo não deseje que isto desabe... Só falta um passo. [...] Sim, os pobres têm razão. É por isso que eu, e todos, sentimos a necessidade da catástrofe. Tenho uma certa pena, [...], mas caminho com decisão para o futuro. Tu e eu, leitor, reclamamos a hora tremenda do juízo final.

Raul Brandão - Vale de Josafat (1933). p. 111-117.

Justiça

A praia é só: a vila [Póvoa] fica distante. Estavam na praia as mulheres da companha esperando o barco, para o verem sossobrar… Então o silêncio despedaçou-se em gritos lancinantes, como o ranger das velas quando no meio dos temporais o vento furioso as despedaça em fitas. Era um rasgar de almas aflitas, soando em ais selvagens, que o mar lívido, impassível, não escutava.

Escutam-no os que têm ouvidos e alma para não serem monstros mortos, como é o mar? Não, Senhor [D. Luís I], não escutam! Todos os ouvidos estão cheios, um dia com o sussurrar da intriga e da veniaga eleitoral, o outro dia com o estrépito das aclamações às vitórias ganhas no campo imundo das batalhas da política. Como os bandoleiros de Wallenstein, eles só amam a peleja pelo saque; e, envenenados pelo desvario do próprio pensamento, se lhes dizem que há deveres a cumprir, sem o negarem, encolhem os ombros, e, por descargo de consciência, dão esmolas.

A esmola, Senhor, é o miserável recurso dos que não podem, ou não sabem distribuir justiça. A esmola não pode ser instituição, é apenas virtude. Flor que só viça nomistério da vida íntima, murcha-se ao contacto do ar duro da vida pública. Eu, que não duvidaria pedir esmola para um pobre, não peço esmola para uma população – reclamo justiça.

Oliveira Martins - Requerimento dos Poveiros. In «Política e Economia Nacional». 2.ª ed. 1885. p. 195–205.

Justiça e Liberdade

Triste reinado aquele em que o sossego e a paz pública se baseiam no desdém público! Debaixo desta ataraxia superficial do povo está a gangrena e a dissolução latente do Estado.

Quer-se a virtude pública, a virtude oficial, a virtude parlamentar, a virtude de Montesquieu, que é a mola indispensável de todo o estado popular, e consiste resumidamente em preferir – o dever à conveniência, o direito à força, a justiça à popularidade e ao êxito.

Da ciência basta a precisa para se entender que o verdadeiro interesse de todos reside no respeito da justiça para cada um, e que é nessa compreensão e nesse culto da justiça que verdadeiramente se baseia a liberdade

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Friday, June 15, 2007

Legitimidade

De aqui se conclui que nunca o verdadeiro democrata deve celebrar o seu triunfo sobre a vontade duma minoria, se essa vontade é moral e desinteressada; antes deve lamentar que a minoria seja obrigada, pela força das coisas, a respeitar normas jurídicas para cuja elaboração não contribuiu.

De aqui se conclui também que é preciso exaltar com um pouco menos de transporte essa vontade das maiorias, essa lei do número, tanto do agrado de certos demagogos. A lei do número, a vontade das maiorias não são os verdadeiros artigos de fé do nosso credo; porque nunca um verdadeiro democrata pode pôr a sua fé senão na liberdade.

De aqui se conclui ainda que o terreno das opiniões deve ficar inteiramente livre de qualquer intervenção da vontade maioritária. Pois esta só é legítima porque a vontade unânime é impossível, porque a liberdade absoluta das vontades impediria praticamente qualquer deliberação colectiva, ao passo que a liberdade das opiniões não só não pode impossibilitar nenhum acto deliberativo, como é absolutamente necessária para que esses actos se realizem em todas as condições de seriedade e de legitimidade. Uma decisão colectiva que não foi tomada depois da mais larga e da mais livre controvérsia, é uma decisão cega, que não se rodeou de todas as condições de segurança e de objectividade.

De aqui se conclui enfim que o indivíduo tem o direito de se rebelar contra o número quando o número, menosprezando a autonomia das consciências, tenta violar os seus direitos essenciais. O que faz a legitimidade, em princípio, das revoluções é o direito, para a maioria, de fazer leis, e para a minoria de as discutir.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Leis

Sr. Presidente, tenho vindo a esta casa quatro ou cinco vezes, em todas essas quatro ou cinco vezes sempre nesta casa se discute tabaco, de maneira que há tabaco no princípio, tabaco no meio, tabaco no fim, há tabaco nas pessoas e há tabaco nas leis.

José Estevão - Sessão de 1852/01/08. In «O Portal da História - Discurso do mês: José Estevão».

Liberalismo

[A Oliveira Martins]

Vale de Lobos, Fevereiro de 1877.

...
As gerações precisam às vezes retemperar-se nas lutas da anarquia ou nas dores da servidão; concentrar-se para a explosão calcadas sob o pé férreo da força brutal. Deixe-me … a convicção de que, entalada entre duas bestas negras, a tirania em nome do Céu e a tirania em nome do algarismo, surgirá, como um foco de luz nas páginas da história, a época em que se proclamavam os direitos individuais absolutos e imprescritíveis, embora as paixões humanas nem sempre os respeitassem.
...

Alexandre Herculano - Cartas a Oliveira Martins. In «Cartas». 5.ª ed. t. I, p. 234-246.

Liberdade

Porque a liberdade não é tanto um fim como um meio: quer-se a liberdade
não tanto para as nações serem livres, como para serem felizes.

Que importa o respeito de propriedade ao que nada possui? Que vale a
liberdade da palavra para o que só tem de proferir maldições e
queixumes? Que monta que os vossos pares vos julguem, se o ódio das
facções vos fez inimigos uns dos outros?

Alexandre Herculano - A Voz do Profeta (1837). In «Opúsculos». 7.ª ed. I, p. 46.

A Antiga Árvore da Liberdade

Antigamente como vegetação constitucional tínhamos apenas uma árvore - a bem conhecida árvore da liberdade regada com o sangue de tantos mártires. Presentemente o constitucionalismo botou horta.

Foi depois de se ver como a árvore medrava neste abençoado torrão, que a pouco e pouco se foi plantando o resto.

Vieram os folhudos repolhos, as saborosas couves penca e lombarda, a bela abóbora, os frescos espinafres, as diferentes alfaces, e os variados cheiros, a pimpinela, a salsa, o coentro - tudo da liberdade.

Pôs-se a mesa rústica debaixo do parreiral, e fundou-se a reinação moderna.

Espalharam-se no ar os aromas apetitosos das saladas e das frituras, e bem assim os ruídos joviais do peixe que chia nas frigideiras, das malhas que batem nos chinquilhos, dos talheres dos copos que tilintam nas mesas, e das banzas [violas, guitarras] que soluçam, lânguidas, beliscadas ao luar, entre as alfazemas em flor.

Tratava-se porém de regar a horta, em que passeavam felizes as lagartas e os pulgões, porque se reconheceu que o sangue de tantos mártires começava a escassear para as vegetações e para as petisqueiras concomitantes.

Então se fez a nora. Vieram os olheiros experientes ver o sítio, e depois de estudado o terreno se resolveu abrir o poço na algibeira do Povo. Armou-se-lhe a roda por cima da barriga; ataram-se os alcatruzes ao calabre; pôs-se uma besta ao pau do carrete; encanudaram-se manilhas; cavaram-se regos para espalhar a água nas leiras e nos alfobres; e principiou a rega por um belo e engenhoso sistema de irrigação suplementar do sangue de tantos mártires em estiagem depois de muito tempo.

Tudo está fresco, viçoso,alegre. Somente de quando em quando, entre os ruídos da galhofa, se ouve um som plangente, monótono, triste. É a nora que geme.

Mas a rega vai correndo, e tudo jubila.

- Se ainda há por aí pescadinhas fritas, pedimos o favor de passar a travessa!

Ramalho Ortigão - Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 193-194.

Liberdade Mais Bem Entendida

A reforma, por isso, só começará quando nas cidades, nas vilas, nas aldeias, dessa «vasta granja da capital chamada as províncias» (Herculano) houver grupos de cidadãos honestos decididos a contar consigo próprios, dispostos a combater no seu cantinho a omnipotência das clientelas, a criar falanges de reformadores que dirijam os serviços de geral interesse, repelindo o polvo do centralismo dos vários redutos de que se apossou. Criar o espírito descentralista, o gosto da iniciativa na vida social, o da actuação na cooperativa e na sociedade escolar, na oficina e no sindicato, na assembleia provincial e no município: eis o que importa, se não é erro grande o que eu digo aqui. A sanção do código virá a seu tempo. Sejamos cidadãos a todas as horas, cooperadores económicos a todas as horas, por um esforço quotidiano de autonomia, no palmo d terra em que temos os pés: esse, ao cabo de contas, é o caminho seguro da liberdade. O remédio para os erros da liberdade é uma liberdade mais bem entendida, - mais concreta, mais espiritual, mais de raiz. Lamentemos sinceramente aqueles que por falta de generosidade – ou de inteligência – são incapazes de o compreender.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Liberdade de Ensino

Chama-se liberdade de ensino, hoje em dia, o direito absoluto que têm os educadores de atentar contra a liberdade da criança, como se não adimitisse discussão a faculdade de modelar o seu espírito segundo o tipo espiritual do pai ou do mestre. Contra essa pretensão devemos sustentar, nós, os verdadeiros liberais, que o ideal da educação deve ser criar homens livres, capazes de escolher livremente o seu próprio tipo.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Liberdade de Imprensa

Chama-se liberdade de imprensa o direito exclusivo que têm certos potentados ou certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas chantagens, de influir na opinião do país. O problema não está, evidentemente, em impedir a liberdade desses homens, mas em pôr a imprensa ao alcance de todos, de maneira que os argentários não continuem a possuir o monopólio da opinião.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Liberdade Económica

... chama-se liberdade económica a liberdade que t~em alguns indivíduos de se oporem, em nome dos interesses criados, à liberdade de todos os outros.

Raul Proença - Da Necessidade Prévia de Defender a Democracia das Suas Aberrações (1927). In «Páginas de Política». t. I, p. 229-249.

Thursday, June 14, 2007

Medo

Frise-se bem, por outro lado, que a Oposição ao regime, não mete MEDO a ninguém. A Oposição só pode meter MEDO ao Governo. E o Governo tem MEDO da Oposição. MEDO que lhe descubra – e dê ao povo conhecimento – os erros e arbitrariedades cometidos ao longo dos anos. Que denuncie os interesses que serve, que não são os da população que trabalha.

Repetimos portanto: O POVO NÃO DEVE TER MEDO.

Folha Eleitoral 10, C. D. E. de Leiria, 1969.

Mentalidade Social

Necker, aproveitando uma ideia proposta por Turgot, tentou o estabelecimento de assembleias provinciais, cujas atribuições compreenderiam, entre outros actos, o início de reformas importantes; e, segundo a opinião de Quinet, «nada mais verídico do que dizer que as assembleias provinciais de Necker, desenvolvendo-se, seriam bastantes a garantir-nos o futuro, qual o fizemos ou aceitamos». Mas onde estava (pergunto eu) a gente capaz de infundir vida a essas assembleias provinciais? A mentalidade da nação era centralista. Consoante as palavras de Laferrière, «a legislação administrativa da Constituinte é sobretudo uma legislação de Estado, e não o que se chama uma legislação liberal», pois destruiu a autonomia local, subordinando ao Estado os poderes da comuna, os do departamento, ao passo que legalizou a anarquia, dando-lhes alçadas policiais que de maneira alguma lhes competiam, É fácil atribuir as culpas à entidade abstracta «Revolução», ou a certas doutrinas de um certo autor; porém, a verdadeira culpada, aqui, é a mentalidade social de um dado povo.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Extinção da Miséria

Considerado na sua maior generalidade, o problema da extinção da miséria é por certo um dos mais difíceis, que se têm proposto ao exame dos filósofos. Questão complexa, nunca chegará a resolver-se enquanto for encarada por um só ou poucos dos seus aspectos. Fenómeno produzido por causas diversas, que assentam já na forma e regímen vicioso do governo, na má organização da sociedade, já na índole mesma, nos costumes e ideias dos indivíduos, a miséria só terá remédio, quando se removerem todas as causa que a produzem.

Enquanto virdes o Estado dirigido pelos que querem lucrar e não despender; o soldado com a arma ao ombro e a enxada ao lado; o contribuinte a entregar aos agiotas e aos prevaricadores o que devia empregar para seu benefício; o pretendente a requerer em vez de trabalhar; o capitalista tirar lucros fabulosos dos seus contratos leoninos; o operário à procura de trabalho sem o achar; a donzela a prostituir-se pela fome; o doente a procurar o hospital; o mendigo a pedir de porta em porta; a criança a embrutecer no abandono – ficai certos que o mal não está sarado, nem pode sarar-se, enquanto todas estas chagas não desaparecerem do corpo social.

J. F. Henriques Nogueira - A Miséria Só Terá Remédio Quando se Removerem Todas as Causas que a Produzem. In «Estudos Sobre a Reforma em Portugal». Lisboa: 1851. p. 283-294.

Mocidade

O comércio está arruinado. A lavoura está decadente. A propriedade está hipotecada.

Só prosperam, só se procriam, só se reproduzem indefinidamente as instituições de jogo e usura, as casas de penhores e os bancos!

Os bancos são os lugares de perdição em que os países pobres e ambiciosos se arruínam trocando a sua pequena riqueza real por uma maior riqueza contingente e fictícia, abdicando o trabalho e criando o jogo, dando dinheiro e recebendo papéis.

A mocidade vive nas antecâmaras do governo como os antigos poetas do século passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do Estado. Os moços são bacharéis e querem bacharelar acerca da coisa pública e à custa da mesma coisa acerca da qual bacharelam. Dizem-se republicanos, democratas, socialistas, falam muito na organização sistemática do trabalho e nos destinos das classes laboriosas, mas não nos dão em si próprios o exemplo da que o primeiro dever de todo o cidadão que se quer prezar de democrata e de livre é ele próprio bastar para si mesmo, prover pela sua iniciativa a todas as suas necessidades, descentralizar-se, trabalhar só, viver de si, que é o único meio de não ser explorado e de não explorar ninguém, afirmar-se finalmente na única forma da independência poderosa e legítima, na única dignidade verdadeira e segura – o trabalho pessoal e livre. A mocidade tem a mais elevada compreensão dos destinos sociais, da moral e da justiça. Unicamente a mocidade tem um defeito que há-de esterilizar a sua iniciativa: ela pensa, mas não trabalha. Assim se, pela sua razão, ela caminha para a conquista ideal das coisas justas, pelas necessidades da vida ela fica fatalmente na órbita subalterna das simples coisas conquistadas.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119 – 132.

Monasticismo

A raça portuguesa foi lentamente e surdamente corrompida pelo antigo despotismo monárquico, pela soberba intrépida e barulhenta dos fidalgos, pelo ouro das conquistas e principalmente pelo monasticismo. Fizemo-nos ociosos, vaidosos, pusilânimes, supersticiosos e fanáticos. A religião – mais clerical que divina – penetrando-nos completamente, dando-nos uma lei infalível para a consciência, proibindo-nos pensar, assegurando-nos a bem-aventurança com o fácil remédio do arrependimento, lavando-nos de todos os crimes por meio da simples confissão deles, lançou-nos na inércia passiva a respeito do problema dos nossos destinos mais elevados. Ensinaram-nos a explicar a culpa pela tentação do Demónio e a considerarmo-nos inocentes pela absolvição dos confessores. Com semelhante teoria o dever e a responsabilidade desaparecem. A consciência cai na imobilidade. As altas relações verdadeiramente religiosas do homem com Deus desaparecem na intervenção do clérigo que se encarrega de todas as acomodações com o céu. Quando um povo assim delega inteiramente nos seus padres o cuidado de salvarem por ele a eternidade da sua alma, como querem que esse povo tenha, para dirigir o que é temporal e contingente, o valor, a dignidade, o sentimento de responsabilidade e de iniciativa que não teve para guardar por si mesmo o que era divino e terno? Quem não tem força para recusar o domínio da sua consciência aos padres também a não pode ter para disputar a sua liberdade aos déspotas. O fanatismo prostra.

Depois a aliança com que o clero tem estreitado a ideia do bem com a do interesse espiritual e com a do sentimentalismo religioso abastarda a noção pura da justiça.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

O Município Organizado Liberalmente

Os governos nascidos da grande luta que há meio século se peleja entre o absolutismo e a democracia conservaram, por uma estranha contradição, os vícios administrativos que primeiro deviam ter extirpado. Vencedores da concentração do poder feita pela monarquia, eles não quiseram prescindir desta arma terrível, e dar às povoações oprimidas e decadentes a vida própria que lhes faltava. Os resultados de semelhante política são, em toda a parte, funestos. As capitais crescem desmedidamente à custa da substância das províncias. Nestas as principais cidades absorvem toda a riqueza dos campos. O Estado tributa e consome; o país contribui e definha. O expediente dos mais simples negócios dilata-se e complica-se. O número dos empregados públicos cresce: o dos funcionários gratuitos diminui. A massa dos impostos, repartida por quem não sabe o que eles custam, é prodigamente gasta. A menor concessão para objecto de utilidade local considera-se especial favor, e às vezes serve de instrumento para corrupção das consciências. A acção governativa resume-se toda nas pessoas dos ministros, que a não podem, nem sabem exercitar. A iniciativa para os melhoramentos de maior vulto depende deles, e é, algumas vezes a seu pesar, prejudicada. O amor da localidade esfria e morre á míngua de incentivo e animação. As famílias poderosas desertam as aldeias. A vida independente da agricultura é trocada e vendida pelo furor dos empregos. A povoação rural escoa-se para as oficinas das cidades, e deixa inculta a terra de seus maiores. O povo sem escolas, sem comícios, sem discussão, sem leitura fica privado de educação política. O egoísmo enraíza-se no coração de todos; o amor da pátria e da humanidade é um sentimento desconhecido. Assim exangue, a sociedade existe à merca da tirania. Derrocados os elementos de resistência a quaisquer planos liberticidas uma facção insignificante, mas audaz pode ditar a lei a todo um país. A centralização absoluta, cega, omnipotente é, pois, como acabamos de mostrar, um gravíssimo mal. Mas estará o remédio no extremo oposto, na descentralização também absoluta, anárquica, caprichosa? Vejamos.

A reacção contra o sistema centralizador, aliás tão justificada e necessária, tem, como todas a reacções, os seus excessos, A centralização trouxe à sociedade europeia grandes bens. Tais foram a unidade das leis, a generalidade de tributos, a igualdade de pesos e medidas, e a abolição de uma infinidade de barreiras, que impediam o comércio interior dos povos. O regime da descentralização, levado ao seu ponto de partida ou às suas extremas consequências – a completa independência da localidade – produziria péssimos efeitos, retardando aqui, embaraçando acolá, auxiliando raras vezes a marcha uniforme, progressiva, constante da civilização. Que força a não ser a da lei comum poderia dominar e transformar os movimentos desencontrados, irregulares e bruscos de milhares de rodas postas ao mesmo pé? Ambos os sistemas que acabamos de comparar fizeram o seu tempo, e estão julgados pela história. Quanto a nós o caminho, que convém seguir, dista tanto de um, como de outro extremo. A organização de grandes municípios bem regidos, bem dotados, bem fomentadores da indústria, bem zelosos pela educação pública será porventura, nesta primeira quadra, o recurso eficaz a que têm de socorrer-se povos e governos.

… O governo, qualquer que seja a sua cor, provavelmente já vista e conhecida, há-de objectar, entre outros motivos, o enfraquecimento da autoridade central e o desfalque nas rendas do tesouro. Não procuraremos consolá-lo nesta parte, porque nenhuma consolação vale a pena para quem perde autoridade e dinheiro, por pequena ou pouco que seja. Diremos, todavia, que o país tem direito a ser bem administrado, e que, quando os governos não querem, não sabem ou não podem fazê-lo, razão lhe assiste para, por suas mãos, satisfazer esta necessidade. Acrescentaremos mais, que o país, que sua, lavra, fabrica e do produto de tudo isto enche as arcas do tesouro, deve ser convertida, diante dos próprios olhos, em objectos de imediato interesse, uma certa porção da própria substância. É tempo de acabar com o sistema administrativo que faz da solução do mais simples negócio uma teia de aranha inextricável. Deixe-se descansar essa empregadoria ignorante e corrupta, que nos gabinetes dos altos funcionários decide, sabe Deus como e porque, de coisas que não conhece. Chame-se a parte inteligente, zelosa e trabalhadora do país ao exame e deliberação das questões que lhe tocam de perto. E já que os governos e as assembleias supremas ocupam o tempo em lutas estéreis ou transigências vergonhosas¹, já que em nada mais se pensa senão em preencher as fileiras do exército e os quadros das secretarias, já que o grosso das rendas do tesouro é absorvido por quem não acrescenta com um real a fortuna pública, já que tudo isto assim é e assim continuará por desgraça nossa, durante alguns anos, cuide o país da sua abandonada, da sua miserável administração municipal. Para esta grande, comum e urgentíssima empresa, em que podem e devem dar-se a mão os homens honestos de todos os partidos, associe o país os seus elementos de energia moral e patriótica. Levante os olhos para as suas montanhas nuas de arvoredo, para as suas charnecas incultas, para os seus rios obstruídos e para os seus caminhos intransitáveis. Observe a imoralidade campeando altiva no seu trono de mortes, roubos e violências, a ignorância dos povos quase tão densa e escura como nas idades bárbaras, e os sofrimentos das classes pobres tão agravados e esquecidos, como se os membros delas não fossem irmãos nossos. Considere a atrasamento, a rusticidade, a falta de todo o conforto de civilização, que se nota no interior das províncias e mesmo à porta das cidades. E depois de ver-se neste espelho tristíssimo, e ainda mais que tão fiel, levante o país a sua voz poderosa, se a indignação lha não sufocar e reclame, ao menos sequer na administração municipal, o pleno gozo dos seus direitos e posse pacífica da sua herança.

¹ Este capítulo foi escrito em fim de 1852. Quão mais desanimadoras e acerbas deveriam ser as considerações que acima se lêem, se a política de hoje as inspirasse!

Henriques Nogueira, J. F. - O Município no Século XIX. Lisboa: 1856. p. 3-14.

Tuesday, June 12, 2007

Opinião Livre

Nas sociedades em que a origem do poder está no sufrágio dirigido pela opinião livremente expressa, nenhuma tentativa de tirania contra a razão pode vingar, nenhuma oligarquia ilegítima consolidar-se.

Oliveira Martins - O Socialismo Actual. In «A Inglaterra de Hoje». 1893. p. 207–218.

Orçamento

ensino primário              180 contos
dotação à família real   622    »

Oliveira Martins - Portugal e o Socialismo. Lisboa: Guimarães, 1873.

Monday, June 11, 2007

Paga

Se excetuarmos o débil clamor da imprensa liberal já meio esganada da polícia, não se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um anfiguri!
Cinco mil contos para as estradas dos aeronautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquilo!
Não tardam a contar por centenas de milhares.
Contar a eles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel - a terra e a indústria ...

Almeida Garrett - Viagens na Minha Terra. Cap. XIII.

Pátria

«A pátria para todos os seus filhos», estandarte de tão diversos regimes, tem sido sempre, dir-se-ia que por uma fatalidade da condição humana, a pátria somente dos que a governam, dos seus prosélitos e dos que dela arrecadam as nutridas vantagens que faltam aos outros.

Ferreira de Castro - Os Fragmentos. Lisboa: Guimarães, 1974. p. 77.

Povo

Tudo isto, e mais ainda, hão-de dizer ao povo; menos que o querem lograr.

Henriques Nogueira, J. F. - O Município no Século XIX. Lisboa: 1856. p. 3-14.

Providencialismo

Aquela atitude ([desse país]) deve ser a do legislador. Em tantíssimos casos (como se lê em Herbert Spencer) não se podem prever os efeitos das leis e as consequências desastrosas da melhor intencionadas. A fé absoluta nas prescrições legais, na maquinaria governamental, é a mais estólida e nociva entre as superstições da humanidade; ninguém se meta a actuar na lei sem actuar primeiro (ou ao mesmo tempo) no espírito público. Combatamos, portanto, o providencialismo em que temos vivido.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Prudente e Justo

Leitor amigo, se queres sinceramente contribuir nos teus meios para fortalecer a tua pátria, dá-lhe modestamente, na pequena órbita da tua influência, entre os teus parentes e os teus amigos, aquilo que ela mais precisa de ter para sua defesa dentro da casa de cada cidadão: não se trata da força do teu braço, trata-se da rectidão do teu juízo: sê prudente e justo.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Sunday, June 10, 2007

Questão

Será falso o argumento da incapacidade do País, com que os senhores deputados combatem a oportunidade da república em Portugal? Não é. Se a câmara que aí temos diante dos nossos olhos é a expressão legítima do sufrágio popular, o argumento é verdadeiro: o país é incapaz. Somente as consequências que esse argumento encerra não ferem apenas o direito à república, ferem também o direito à liberdade. A lógica não pode parar onde à casuística dos rábulas apraz que lea pare: a lógica há-de ir até onde o senso comum a possa acompanhar, e a lógica leva o juízo, a boa-fé e a verdade a declararem abertamente o seguinte: Se a câmara electiva que acaba de ocupar-se da discussão destes princípios dá efectivamente a medida legal e autêntica da moral, da virtude e da capacidade pública, então a questão do governo não pode versar entre uma república e uma monarquia democrática e parlamentar. A questão é mais complexa e mais elevada. A questão, senhores deputados, é se Vossas Excelências têm ou não têm a capacidade precisa para serem os representantes de um povo independente. A questão é de eleição ou de não eleição; é de governo livre ou de governo despótico. Se os legítimos representantes do povo prestam, nós teremos a liberdade com qualquer dos dois governos livres – república democrática ou monarquia parlamentar. Se os legítimos representantes do povo não prestam, teremos – a anarquia na república, e teremos a escravidão na monarquia.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Quisera

Quisera que, num país como o nosso emancipado por cruentos esforços da tutela humilhante, egoísta e sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regímen espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas estéreis e de cicatrizar feridas que ainda gotejam, ávido enfim de gozar as doçuras da liberdade por que tanto há sofrido, o governo do Estado fosse feito pelo povo para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de REPÚBLICA.

Quisera que a administração da justiça corresse imparcial, rápida e gratuita; que os serviços feitos ao País tivessem uma recompensa condigna; que os crimes achassem correcção em vez de vingança; …

Quisera que a guarda nacional, milícia gratuita, que não obriga o cidadão a abandonar as suas ocupações, constituísse o grosso da força armada; e que o exército subsidiado se reduzisse unicamente aos corpos científicos.

Quisera que a despesa pública fosse inferior à receita; que se proscrevesse o ruinoso sistema das dívidas; e que a aplicação dos rendimentos do Estado fosse inteiramente produtiva, ilustrada e filantrópica.

Quisera que a rede tributária, que ameaça de estancar o País, ficasse reduzida a um só imposto progressivo sobre a renda, cobrado sem despesa e realizado sem ágio.

Quisera que os capitais, pela barateza do juro, auxiliassem a produção, em lugar de absorverem a maior parte dos seus lucros.

Quisera que o direito à subsistência pelo trabalho tivesse nas oficinas … e obras públicas, uma útil garantia; que o trabalho das mulheres ganhasse uma área mais vasta, e que fosse melhor retribuído.

Quisera que a agricultura, a indústria fabril e o comércio recebessem do estado uma desvelada protecção, como fontes principais da riqueza.

Quisera que as estradas, os canais, as barras, e em geral todos os meios de viacção merecessem a preferência no extenso capítulo das nossas necessidades.

Quisera que a comunicação do pensamento não achasse obstáculos; e que o correio fosse inteiramente gratuito tanto para as cartas como para os escritos periódicos.

Quisera que os órfãos, os doentes e os inválidos, que dependem da caridade pública, encontrassem nas casas de misericórdia lenitivo para os seus males; e que se franqueassem a todos os operários as instituições económicas e preventivas da miséria.

Quisera que os cuidados exercidos sobre a saúde pública conseguissem minorar e extinguir, se tanto fosse possível, as causas de infecção, que vão minando gradualmente a robustez das gerações.

Quisera que o derramamento da instrução chegasse às últimas camadas sociais; que a imprensa pública se tornasse um instrumento de progresso; e que o estado protegesse o talento abandonado, que a falta de cultura não deixa medrar.

Quisera que a religião de nossos pais não servisse de escudo a interesses egoístas e mundanos, mas que acompanhasse o progresso da humanidade; …

Quisera que a associação, origem de maravilhas, se estendesse a todas as classes da sociedade e principalmente àquelas que vivem do seu salário.

Quisera, por último, que Portugal, como povo pequeno e oprimido, mas cônscio e zeloso da sua dignidade, procurasse na Federação, com outros povos … a força, a importância, e a verdadeira independência que lhe faltam na sua tão escarnecida nacionalidade.

Henriques Nogueira, J. F. - Estudos sobre a Reforma em Portugal. Lisboa: 1851. p. VIII-XIV.

Saturday, June 09, 2007

Reforma

Quanto a nós o melhor socialismo é o que mais harmonizar com os costumes e ideias do povo, a que é aplicado; o que mais rapidamente produzir os seus bons efeitos; o que mais facilmente se puder difundir por todos os recantos do país; o que for concebido no interesse de todos e não de alguns dos grupos sociais; o que não ferir os razoáveis e legítimos direitos de ninguém; o que, finalmente, constituir uma sociedade, em que o pobre não tenha inveja do rico, mas possa vir a sê-lo pelo seu trabalho, e em que o rico não avexe o pobre, antes o proteja fraternalmente.

Era uma reforma, fundada nestes princípios, que nós desejáramos ver realizada no nosso país. E para que ela se fizesse não carecíamos por certo de resolver os fundamentos da sociedade, de tocar, sequer, nos princípios, para nós respeitáveis e santos da família e da propriedade. Bastava-nos, tão-somente, desenvolver o gérmen fecundíssimo da associação, dar ao imposto um alcance mais justo e uma aplicação mais conveniente, e extinguir, por último, um certo número de disposições vexatórias e que abunda a nossa legislação.

Quereis felicitar, até um certo ponto, o homem de trabalho. Tendes um meio fácil. Não lhe deis nada – mas tirai-lhe de sobre os ombros o peso dos males, com que sucumbe. Livrai-o a ele e a seus filhos do cordão do recrutamento, que os arrasta do seio da família e do granjeio da sua indústria para as brutalidades e vícios da vida militar, e para os horrores do campo de batalha. Livrai-o das garras dos agentes do fisco e da alcunhada justiça que o depenam sem dó. Espécie daninha, insaciável e numerosíssima, os escrivães são actualmente para o povo os dignos sucessores dos portageiros, oitaveiros e dizimeiros dos antigos, mui nobres e reverendos senhorios destes reinos, que Deus tem, e conserve, em sua santa glória. Livrai-o das unhas não menos agudas da agiotagem local, que sob o título de empréstimo, adiantamento, compra e venda de géneros, lhe tira do corpo a própria camisa. Livrai-o, por último, da rede de impostos, que o cinge, por toda a parte, no selo do requerimento que faz, no maneio da pequena indústria que o sustenta, nos direitos dos géneros que cultiva, na sisa do prèdiozinho que compra, no suo do tabaco que o destrói, e sob muitas outras formas.

Se o vosso ânimo é generoso e banfazejo e quereis aproximar mais da felicidade o homem de trabalho, dai-lhe instituições civilizadoras e económicas apropriadas às suas necessidades. Dotai-o com escolas em que os eus filhos obtenham ao pé da porta, com agasalho e atractivos, uma educação física, moral e literária, que sirva de base a sua carreira futura. Destinai-lhe oficinas e obras públicas, onde ele, na falta do trabalho dos particulares, possa sempre ganhar o pão de cada dia. Proporcionai-lhe caminhos transitáveis, por onde lhe seja fácil levar os seus frutos ao mercado; fontes copiosas, que lhe satisfaçam as necessidades domésticas; dinheiro a baixo juro para o seu tráfego; e instrumentos aperfeiçoados para a sua indústria.

Se a tudo isto juntares a inspiração dos hábitos de sociabilidade, em que ele deve viver com seus irmãos, e dos sentimentos de benevolência recíproca com que lhe cumpre tratar e socorrer os menos felizes, tereis feito a bem do homem de trabalho, senão tudo, a maior parte do quanto humanamente é possível fazer-lhe.

Henriques Nogueira, J. F. - A Miséria Só Terá Remédio Quando se Removerem Todas as Causas que a Produzem. In «Estudos Sobre a Reforma em Portugal». Lisboa, 1851. p. 283-294.

Representação Nacional

Ora a representação nacional há muito tempo que está sendo em Portugal uma farsa ridícula para a ciência e uma vergonha pública para o patriotismo. A câmara é de uma ignorância enciclopédica. Erra e insulta, e não se esclarece nem se desafronta, o que prova que não tem ciência e que parece não ter carácter.

Poderíamos confirmar com muitos exemplos tirados dos últimos debates parlamentares a verdade dessa asserção, que poderá ser tida por ousada, mas não por duvidosa. Não particularizamos esses factos porque eles envolvem nomes de homens, e nós, que não temos dúvida em deixar cair sobre as pessoas o ridículo, temos repugnância em deixar pesar sobre elas a vergonha. A crítica, se a levássemos até aí, tornar-se-ia uma execução de alta justiça, porque o ridículo lava-se na reabilitação com que nos retemperam os actos sérios, a vergonha quando mancha o carácter faz uma nódoa corrosiva e indelével. As Farpas ferem apenas. O ferrete imprime-se com o ferro em brasa. Por essa razão preferimos adoptar neste assunto a generalidade impessoal.

Faltam à câmara as ideias políticas e faltam-lhe os princípios morais. Daqui resulta uma perturbação insanável, um mal sem cura. É a corrupção, a gangrena, é a paralisação senil afectando o jogo de todo o maquinismo constitucional.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Representantes

Como veio o alentejano procurador de Trás-os-Montes, e o minhoto do Alentejo, e quase sempre o lisboeta de toda a parte, quando o triste (ou antes o alegre) tudo ignora de todo o reino, afora os corredores de S. Carlos, as alamedas do Passeio Público, as galerias de S. Bento, e as arcadas do Terreiro do Paço, donde se sobe para as secretarias onde se requer?

Eleições de facção. Eleições de dependência. Eleições de compra, ou de compadria. Eleições sem cor, ao menos, de verosimilhança ou possibilidade. Eleições sem eleição. Eleições verdadeiramente fabricadas nas trevas, e para trevas. Comédia, que seria para rir, se não fosse para chorar, e mais vã cem vezes que as dos tablados, pois que aí, ao menos, se o actor não é a personagem que representa, aparece falando acertadamente como ela, e advogando nos termos próprios os seus interesses.

Fazem-no assim os representantes parlamentares? Pedi, a uma e uma, a cada província, que vos mostre o rol dos benefícios, de que foi devedora às diligências da maior parte dos desconhecidos em quem votou.

Castilho, António Feliciano de - Felicidade pela Agricultura. 2.ª ed. 1903. Vol. I, p. 77-83.

Governo Representativo

O Governo representativo, assim, não seria uma burla; as consciências fariam a sua obra sem coacção; e, por uma consequência necessária, leis boas trariam por toda a parte abundância, e com ela contentamento e bons costumes.

O povo, que não é jamais suicida, e tem um maravilhoso instinto do bem, defenderia como arca de aliança o Governo que a tais destinos o houvesse conduzido.

Castilho, António Feliciano de - Felicidade pela Agricultura. 2.ª ed. 1903. Vol. I, p. 77-83.

Sistema Representativo

Para que o sistema representativo seja uma realidade, uma formosura, uma salvação; para que se coadune com o entendimento, com a vontade, com os multiplicadíssimos interesses de todos; não é só útil e necessário, é indispensável, que os cargos electivos, de qualquer natureza que sejam, se dêem segundo as aptidões, para bem se preencherem sem respeito algum às opiniões políticas, nem à indiferença e à incredulidade, pois muita gente há aí hoje, e da melhor em consciência e em patriotismo, a quem tão longas decepções tornaram incrédula, e aparentemente indiferentes sobre os negócios públicos.

Não nos explicámos bem. Há muita gente, que, enfadada de ver a política substituída constantemente pela individualidade, as coisas pelas pessoas, e os princípios pelas ambições, não vai enxovalhar o seu patriotismo na tauromaquia das eleições, nem nas orgias dos clubes; conserva latente, e como que de reserva para melhores tempos, o seu patriotismo, mas que, chegada a hora de o mostrar por obras, o presentará inteiro, enérgico, produtivo, desinteressado, incorruptível, e inquebrantável.

Castilho, António Feliciano de - Felicidade pela Agricultura. 2.ª ed. 1903. Vol. I, p. 77-83.

República

Somente as naturezas tímidas ou insensatas é que podem confiar-se na esperança já formulada pelos jornais conservadores: - Isto cai por si. Cai por si, é verdade, mas depois de nos ter infectado com o vírus de uma decomposição irremediável. É preciso entrar e de pronto, no caminho da recomposição nacional, de um modo deliberado e verdadeiramente digno. Que a nação tome conta dos seus destinos. O que é a República, senão uma nacionalidade exercendo por si mesma a própria soberania, intervindo no exercício normal das suas funções e magistraturas?

Manifesto do Partido Republicano Português. 11 de Janeiro de 1891.

Friday, June 08, 2007

Servilismo e Mediocridade

Os esforços que fizemos para conquistar a liberdade que hoje temos não bastaram para regenerar as nossas almas do aviltamento em que por muito tempo estiveram. Tinha-nos ficado, como um defeito nativo, a dobra servil. A nossa vocação especial fora muitos anos – sermos vítimas; faltaram-nos repentinamente os algozes, não aprendemos a ser mais nada, e ficamos numa desocupação desconsolada e abatida. A guerra de que proveio a constituição deu-nos apenas uma vitalidade febril e passageira. Logo que deixámos de discutir os princípios da liberdade que então nos propusemos, não tornámos a fazer mais nada senão servir os interesses pessoais e a ambição dos indivíduos.

Do sistema que não temos sabido manter consistente e válido restam-nos apenas hoje os benefícios que ele, depois de corrompido, faculta às mediocridades ambiciosas, ao patronato, à intriga, à pusilanimidade, à baixeza. Temos do constitucionalismo – esgotado – tudo o que ele tinha de mau na lia: a nobilitação dos parvenus, a falsa grandeza, a falsa virtude, o falso talento, o funcionalismo exuberante, a arrogância burguesa, o reinado da usura, a ruína do trabalho, a sofismação dos princípios, a decadência da arte, a depravação do gosto, a queda dos caracteres e dos espíritos para o fútil, para o ordinário, para o reles, para o chinfrim … Vede a Câmara dos Deputados: não é só a precisão nas ideias, a firmeza nos princípios e a nobreza na palavra o q eu a ela lhe falta, falta-lhe também a dignidade do porte, faltam-lhe as maneiras, falta-lhe a toilette, e é quase tão ridícula pelos seus discursos como pelas suas gravatas; sente-se a má companhia, revela-se o mauvais lieu no simples aspecto chulo dos Cíceros pimpões.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Soberania e Tirania

... a questão das monarquias e das repúblicas é uma questão secundária. Se entende que a monarquia corresponde melhor aos fins, prefere-a; prefere a república, se entende o contrário. Tão ilegítimo acha o direito divino da soberania régia, como o direito divino da soberania popular. Para ele a soberania não é direito: é facto – facto impreterível para a realização da lei psicológica, e até fisiológica, da sociabilidade, mas, em rigor, negação, porque restrição, nos seus efeitos, do direito absoluto, e cujas condições são, portanto, determinadas só por motivos de conveniência prática e dentro dos limites precisos da necessidade. Fora disto, toda a soberania é ilegítima e monstruosa. Que a tirania de dez milhões se exerça sobre um indivíduo, que a de um indivíduo se exerça sobre dez milhões, é sempre tirania, é sempre uma coisa abominável.

Alexandre Herculano - Cartas. 5.ª ed. t. I, p. 207–219.

Socialismo

Não há neste empenho de reforma social nenhuma ideia de exclusivismo a favor desta ou daquela classe de cidadãos. Emanado dos grandes princípios da igualdade e fraternidade, o socialismo tende ao bem de todos, e não se contenta com o de alguns. Se parece ocupar-se de preferência do destino dos pobres, é porque são eles os mais afastados do nível, em que se acham, ou que já excedem as classes abastadas. De mais inútil e porventura ridícula empresa seria – procurar o aumento de cómodos e regalos para aqueles filhos mimosos da opulência, que disso se não descuidam, que, em todo o tempo, muito e bem o sabem fazer. Ensine a moderna economia política os ricos a serem riquíssimos, que a ciência social guiará, modestamente, o operário pela vereda difícil mas segura do trabalho, da economia e da morigeração, até o elevar à desejável independência.

Henriques Nogueira, J. F. - A Miséria Só Terá Remédio Quando se Removerem Todas as Causas que a Produzem. In «Estudos Sobre a Reforma em Portugal». Lisboa, 1851. p. 283-294.

Sociedade

Em virtude dessa necessidade de organização, admitimos limitações à liberdade plena de cada um (por exemplo, no campo económico): não o fazemos, porém, em nome de supostos direitos da sociedade (à qual não reconhecemos existência real, transcendente aos indivíduos que se associam), mas em nome da liberdade dos outros indivíduos, - sobretudo dos pobres, quando colocados pela pobreza em uma espécie de escravidão. Adversário do realismo, rejeitamos, tanto o realismo social dos De Bonalds e dos Durkheims, como o realismo psicológico da alma-substância individual. O eu, o outro, a relação do eu e do outro (sociedade), são, quanto a nós, momentos vários de um mesmo processo do pensar. (V., no tomo I, o ensaio «Educação e Filosofia»). Falando em termos do vocabulário de Comte, para exprimir uma tese bem diversa da dele: síntese individual e síntese social são ambas igualmente «subjectivas». Hipostasiar a sociedade, concebê-la como um ser que se põe acima dos indivíduos, é abrir a porta à Razão-de-Etado e às hordas de furiosos que pretendem fazer, como diz o Voltaire, «du malher de chacun le bonheur général».

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer, in «Ensaios», t. II, 2.ª ed. P. 181-204.

Superstição Legislativa

Desleixando a acção independente para invadir quartéis e secretarias, conferimos ao Estado a omnipotência (ou antes, ao bando que o empolgou, proprietário por conquista de todo o País): e se a faina imensa de tutelar um povo (como já dissemos) excede a capacidade dos maiores espíritos – que diremos da turba dos pais-da-pátria na estrutura actual do Parlamentarismo, que teimamos em não reformar? Abandonar-nos, em tais circunstâncias, à superstição legislativa – é a máxima das loucuras que se podem em política atingir.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Thursday, June 07, 2007

Tirania de Charlatães

Sociedade em supuração, onde «os escroques falam de moral, as mulheres perdidas de civismo, e os mais infames dos humanos da dignidade da espécie humana». Assim se devolveu a França «numa mesa de jogadores, onde com a oferenda do cidadão activo, com palratório, audácia, e uma cabeça efervescente, - os mais subalternos dos ambiciosos arremessaram os seus dados». Quando a vida nacional é dirigida, não pelo trabalho das elites (onde sempre incluo a elite operária) e por associações especiais para fins concretos e limitados , mas pelo centralismo jacobino, romântico, fanático, anónimo e verbalista, - a «soberania popular» é uma tirania de charlatães, a escravizar o maior número. Não importa: ele, jacobino, declara-se maioria, e neste pressuposto dirá, como Retif de la Bretonne, que «a minoria» (o não-jacobino) «é sempre criminosa, ainda quando moralmente tem razão».

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Tirania e Ditadura

… conhecem que o mal não está tanto em ser este ou aquele quem nos governe, como no facto de sermos governados. Que importa que o poder saia do seio da nação, se é sempre poder? E a tirania, porque somos nós que a criamos, deixa de pesar menos por isso, de ferir, de rebaixar a nossa dignidade de homens livres? Não é pois na substituição da ditadura de Sila à de Mário, da de Napoleão à de Robespierre, da de Espartero à de Isabel II, que está o segredo das revoluções, mas na extinção total da ditadura, fosse ela a de um santo, da tirania, fosse ela a de um deus. Ora tirania e ditadura é a unidade política, a centralização dos poderes; tirania e ditadura da pior espécie, porque são sistemáticas, legais, organizadas, destruindo a ordem natural com o pretexto da ordem política, esmagando toda a iniciativa, toda a individualidade, toda a nobreza, e reduzindo uma nação ao estado de um rebanho paciente e uniforme a que, por única consolação, se deixasse o direito de eleger o pastor que o guia, e o cão que às dentadas o faz entrar na forma.

Antero de Quental - Portugal Perante a Revolução de Espanha. In «Prosas», t. II, p. 59–66.

Tutelado

… para nós agora o importante é o advertir como o jacobinismo, afinal, é o resultado e o exagero da atitude que se adquira sob a monarquia absoluta. Aparece-nos demagógico e de barrete frígio o mesmo Estado centralizado que primeiro víramos de flor-de-lis. «Sabei» (dizia Law ao marquês de Argenson) «que este reino … é governado por trinta intendentes». Se vinte milhões de burgueses e de campónios se deixaram tiranizar pelo bando jacobino, foi porque, já no tempo da monarquia, o génio da iniciativa individual e a capacidade para a associação livre se tinham neles atrofiado; porque só no Estado todo-poderoso havia uma forte organização; porque as classes altas – as pseudo-elites, - desertaram o posto que lhes competia de condutores da peonagem, e todos por isso perderam a ideia da acção independente e respnsável; porque, abandonando o povo à absorção metódica dos agentes da realeza, o nobre se eliminou do governo local, para ir ser lacaio dos «senhores reis». Havia-se desenvolvido progressivamente o temperamento centralista, a atitude mental do tutelado.

(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.

Wednesday, June 06, 2007

Ultimatum

A Data Afrontosa – 11 de Janeiro de 1890 – Não Poderá Mais Ser Esquecida; …

O facto brutal do Ultimatum de 11 de Janeiro, que é uma desonra para a diplomacia europeia, que deixou um pequeno estado ao abandono, diante do arbítrio de uma potência mercantil, essa moderna Catargo, que não conhece deveres, nem mutualidade, …

Manifesto do Partido Republicano Português. 11 de Janeiro de 1891.

Tuesday, June 05, 2007

Virtude e Democracia

Catão, escrevendo a seu filho, definia assim o perfeito orador político «Um homem de bem que sabe falar.» Ora quando se não possa ser inteiramente o ideal de Catão, ignore-se como se fala, mas saiba-se como se é homem de bem.

Ter, como alguns ou quase todos os senhores deputados, uma opinião na Câmara e uma opinião diferente nos corredores de S. Bento, ter ainda além disso uma opinião para o Chiado e outra para a cova em que se reúne o partido – isto não é digno nem honesto. Ter sobre um princípio vital de governação ou de política uma opinião firme, convicta, inabalável, é possuir, ao mesmo tempo e por esse simples facto, a força com que essa opinião se defende e se mantém. Não ter opinião ou ter uma opinião oscilante e mutável é comprometer inteiramente os princípios pela falta da virtude.

Porque sem a virtude não poderá nunca existir a democracia.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.

Virtuosos

Querem manter a ordem? Aqui têm um meio bem simples, bem pronto: «Deixem de manter os abusos.»

Querem governar bem? Lembrem-se do que dizia Washington: «A probidade é a melhor política.»

Sejam virtuosos os que não podem ser instruídos. A inteligência só longamente se cultiva, a virtude penetra-nos de pronto, porque a justiça é um axioma, é uma evidência, não demanda estudos preliminares nem reflexões subsequentes, é o princípio e é o fim de si mesma.

As Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 119–132.