Friday, June 15, 2007

A Antiga Árvore da Liberdade

Antigamente como vegetação constitucional tínhamos apenas uma árvore - a bem conhecida árvore da liberdade regada com o sangue de tantos mártires. Presentemente o constitucionalismo botou horta.

Foi depois de se ver como a árvore medrava neste abençoado torrão, que a pouco e pouco se foi plantando o resto.

Vieram os folhudos repolhos, as saborosas couves penca e lombarda, a bela abóbora, os frescos espinafres, as diferentes alfaces, e os variados cheiros, a pimpinela, a salsa, o coentro - tudo da liberdade.

Pôs-se a mesa rústica debaixo do parreiral, e fundou-se a reinação moderna.

Espalharam-se no ar os aromas apetitosos das saladas e das frituras, e bem assim os ruídos joviais do peixe que chia nas frigideiras, das malhas que batem nos chinquilhos, dos talheres dos copos que tilintam nas mesas, e das banzas [violas, guitarras] que soluçam, lânguidas, beliscadas ao luar, entre as alfazemas em flor.

Tratava-se porém de regar a horta, em que passeavam felizes as lagartas e os pulgões, porque se reconheceu que o sangue de tantos mártires começava a escassear para as vegetações e para as petisqueiras concomitantes.

Então se fez a nora. Vieram os olheiros experientes ver o sítio, e depois de estudado o terreno se resolveu abrir o poço na algibeira do Povo. Armou-se-lhe a roda por cima da barriga; ataram-se os alcatruzes ao calabre; pôs-se uma besta ao pau do carrete; encanudaram-se manilhas; cavaram-se regos para espalhar a água nas leiras e nos alfobres; e principiou a rega por um belo e engenhoso sistema de irrigação suplementar do sangue de tantos mártires em estiagem depois de muito tempo.

Tudo está fresco, viçoso,alegre. Somente de quando em quando, entre os ruídos da galhofa, se ouve um som plangente, monótono, triste. É a nora que geme.

Mas a rega vai correndo, e tudo jubila.

- Se ainda há por aí pescadinhas fritas, pedimos o favor de passar a travessa!

Ramalho Ortigão - Farpas. ed. de 1943. t. IV, p. 193-194.

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