Sunday, June 17, 2007

Juízo Final

A vida mofificou-se nos últimos vinte anos, primeiro com lentidão e, depois da guerra, num tropel que mete medo. Ninguém pensa hoje como ontem. Por último – já reparaste? – até as fisionomias se transformaram... Eu sou do tempo em que ser rico não era uma afronta para os pobres. A posse era um cargo às vezes pesado. Dizia-se – pobrete e alegrete; hoje, só se é pobre com desespero. Na província que conheço, as palavras senhorio e fidalgo tinham quase a mesma significação. Muitos senhorios viviam com os caseiros e quase como ficação. Muitos senhorios viviam com os caseiros e quase como eles. [...]

As classes não estavam tão divididas. Hoje o rico desconhece o pobre. [...] O pobre não tinha visto muita gente, e da pior, enriquecer de repente. [...]

Onde vão as existências, interiores e recolhidas, que cumpriam religiosamente a vida? Desapareceram há anos ou há séculos? Só uma direcriz se marca cada vez mais fundo – enriquecer e gozar. Enriquecer seja como for e gastar à larga, venha donde vier.

A vida de família, como nós a compreedemos, já se transformou. A família dissolve-se. Um professor de Lisboa, falando-me dos rapazes que andam agora nas escolas, disse: - Os rapazes ainda lá iam... mas não encontram amparo nenhum em casa, nem no pai, nem na mãe, nem nos tios. É tudo a mesma mixórdia.

[...]

Num espaço de quinhentos metros, pelo princípio da Avenida, há vinte, trinta casas de jogo toda a noite abertas. Alguém calculou que o número de prostitutas, na capital , era de vinte mil. E as outras? as piores? Os teatros transbordam, o dinheiro perdeu o valor (1921 – 1922). Todos caminhamos com febre – a febre de quem não confia no dia de amanhã. O dia de amanhã talvez não exista; o que existe são as grandes oligarquias políticas, económicas e financeiras; os grandes negócios, as grandes casas bancárias, onde através das redes de arame doirado o papel corre e transborda. Toda a gente enriquece de um dia para o outro e toda a gente gasta, gasta, gasta. Aqui há tempos correu notícia de bancarrota. Houve um pânico e as ourivesarias foram assaltadas para se empregar o papel em jóias. O jogo tomou uma importância capital nesta sociedade que se dissolve – a vida é uma roleta. [...] Cada qual é ainda um ser razoável, que discute e aponta o perigo, mas todos juntos resvalamos para o fundo como cegos.

[...] Um professor da Universidade, meu amigo, foi a bordo de um paquete despedir-se dum rapaz porquem se interessava [...], e disse-lhe com um sorriso irónico: - Enriquece, sobretudo enriquece ...seja como for... contando que se não venha a saber. Disse-o com ironia, mas todos nós sabemos o que esta ironia pesa e o que vale a experiência da vida... – Contanto que se não saiba. De resto, o exemplo vem de cima, vem das classes chamadas superiores, que enriquecem sabe Deus como. O grande comerciante P. ganhou este ano (1921) cinco a seis mil contos de réis. Foi ele quem deitou a perder um pobre tabelião provinciano, a quem aconselhou que rasgasse as folhas dum testamento... [...] O importante é fazerem-se negócios, mais negócios, muitos negócios. [...]

Pede-se um governo, um plano, uma força – homens implorando aos manequins que os salvem! São os políticos muitas vezes que pregam contra o jogo no parlamento, que vão à noite deitar os dados na roleta. O R., que eu conheci há dez anos estudante pobre, roda hoje num automóvel como um carro de guerra; aquele médico de província pobre, e com uma família pobre, ganha hoje (1920), sessenta contos por ano como comissário do governo em qualquer banco. O filho deste republicano histórico fez uma fortuna na[...], de tal maneira escandalosa que não pode lá voltar. Apontam-se a dedo políticos que ganharam muitas centenas de contos com negócios de arroz e de açucar. Fulano, outro dia ministro e a quem o pai deixou no Ribatejo uma pequena herdade que ele tem aumentado com terrenos à roda, campo hoje, campo amanhã, deu há dias um jantar na sua aldeia aos amigos. Festa rija, brindes, até que chegou a vez ao caseiro, brusco e ingénuo, que, de copo em punho, disse: - Senhor doutor, à sua saúde! E o que lhe digo, senhor doutor, é que é pena que Vossa Senhoria não continuasse por mais algum tempo ministro – porque acabava por comprar toda a freguesia!

[...] Aqui há tempos, as galerias atiraram moedas de cobre sobre os deputados, gritando-lhes: - Parasitas! parasitas! [...]

Mas as classes superiores? A justiça? Conheço dez, vinte casos cuja fortuna assenta numa primitiva infâmia. Conheço mil pobres com uma vida digna de que ninguém fez caso. O rico explora o desgraçado, já não há homem nenhum que não se sinta afrontado e que no íntimo não deseje que isto desabe... Só falta um passo. [...] Sim, os pobres têm razão. É por isso que eu, e todos, sentimos a necessidade da catástrofe. Tenho uma certa pena, [...], mas caminho com decisão para o futuro. Tu e eu, leitor, reclamamos a hora tremenda do juízo final.

Raul Brandão - Vale de Josafat (1933). p. 111-117.

1 comment:

Alexandre Sousa said...

Grande texto Virgílio... grande texto tremendamente verdadeiro e sem descontinuidade ao longo do tempo.

Um abraço