Sunday, June 10, 2007

Quisera

Quisera que, num país como o nosso emancipado por cruentos esforços da tutela humilhante, egoísta e sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regímen espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas estéreis e de cicatrizar feridas que ainda gotejam, ávido enfim de gozar as doçuras da liberdade por que tanto há sofrido, o governo do Estado fosse feito pelo povo para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de REPÚBLICA.

Quisera que a administração da justiça corresse imparcial, rápida e gratuita; que os serviços feitos ao País tivessem uma recompensa condigna; que os crimes achassem correcção em vez de vingança; …

Quisera que a guarda nacional, milícia gratuita, que não obriga o cidadão a abandonar as suas ocupações, constituísse o grosso da força armada; e que o exército subsidiado se reduzisse unicamente aos corpos científicos.

Quisera que a despesa pública fosse inferior à receita; que se proscrevesse o ruinoso sistema das dívidas; e que a aplicação dos rendimentos do Estado fosse inteiramente produtiva, ilustrada e filantrópica.

Quisera que a rede tributária, que ameaça de estancar o País, ficasse reduzida a um só imposto progressivo sobre a renda, cobrado sem despesa e realizado sem ágio.

Quisera que os capitais, pela barateza do juro, auxiliassem a produção, em lugar de absorverem a maior parte dos seus lucros.

Quisera que o direito à subsistência pelo trabalho tivesse nas oficinas … e obras públicas, uma útil garantia; que o trabalho das mulheres ganhasse uma área mais vasta, e que fosse melhor retribuído.

Quisera que a agricultura, a indústria fabril e o comércio recebessem do estado uma desvelada protecção, como fontes principais da riqueza.

Quisera que as estradas, os canais, as barras, e em geral todos os meios de viacção merecessem a preferência no extenso capítulo das nossas necessidades.

Quisera que a comunicação do pensamento não achasse obstáculos; e que o correio fosse inteiramente gratuito tanto para as cartas como para os escritos periódicos.

Quisera que os órfãos, os doentes e os inválidos, que dependem da caridade pública, encontrassem nas casas de misericórdia lenitivo para os seus males; e que se franqueassem a todos os operários as instituições económicas e preventivas da miséria.

Quisera que os cuidados exercidos sobre a saúde pública conseguissem minorar e extinguir, se tanto fosse possível, as causas de infecção, que vão minando gradualmente a robustez das gerações.

Quisera que o derramamento da instrução chegasse às últimas camadas sociais; que a imprensa pública se tornasse um instrumento de progresso; e que o estado protegesse o talento abandonado, que a falta de cultura não deixa medrar.

Quisera que a religião de nossos pais não servisse de escudo a interesses egoístas e mundanos, mas que acompanhasse o progresso da humanidade; …

Quisera que a associação, origem de maravilhas, se estendesse a todas as classes da sociedade e principalmente àquelas que vivem do seu salário.

Quisera, por último, que Portugal, como povo pequeno e oprimido, mas cônscio e zeloso da sua dignidade, procurasse na Federação, com outros povos … a força, a importância, e a verdadeira independência que lhe faltam na sua tão escarnecida nacionalidade.

Henriques Nogueira, J. F. - Estudos sobre a Reforma em Portugal. Lisboa: 1851. p. VIII-XIV.

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