Se muito se ilude, como dizemos, quem adscreva a hegemonia do povo [desse país] às excelências dos seus governos e dos políticos e legiferantes, não menos se enganam, por outro lado, aqueles que lhe atribuem a superstição da lei, obra dos ditos legiferantes. Não confundamos com tal superstição um sólido sentimento da legalidade, da disciplina íntima, da ordem justa, que se pode aliar (e que se alia) a nenhuma superstição da lei escrita. A letra mata, o espírito vivifica. Acentua bem um escritor francês que não há país como [esse país] onde se vejam os próprios juízes – os homens justos – criticarem a lei com mais ironia, ridicularizarem-na com mais humorismo, e isto do alto da sua tribuna e na presença dos litigantes; onde tantas prescrições e regulamentos fossem condenados ao desuso pela oposição dos indivíduos, oposição que a autoridade renuncia a reprimir; onde os próprios tribunais se arvorem, como [nesse país], em cúmplices da resistência e em censores da legislação. «Honra aos que por amor da justiça vestiram o uniforme de transgressores da lei!»: foi um característico [cidadão desse país] o ilustre lorde que escreveu isto. «A lei em França» (torno ao escritor que atrás indico) «ostenta elevação de tom, solenidade de forma, e, por assim dizer, uma fé segura e tranquila no seu direito a ser obedecida; mas [nesse país] as atitudes são precisamente as opostas: o legislador mostra-se ali como duvidoso de si mesmo, e perfeitamente compenetrado do carácter suspeito da sua obra. A lei francesa é imperativa; ela ordena, ela impõe; a [desse país] é não raro facultativa: propõe um sistema, que o indivíduo seguirá ou não, segundo for o seu juízo» (não porém o seu capricho). «A lei em França é votada por um tempo indefinido, e apresenta-se sempre como uma solução; [nesse país] é votada, muitas vezes, por um período limitado, e dá-se humildemente como um ensaio». É claro que esta fraqueza da disciplina externa, da lei escrita, se compensa pela força da disciplina interna, das «leis não escritas» de que fala a Antígona, do esforço espiritual de concentração. Pouco importa a respeitabilidade da lei, se estamos garantidos da do juiz. Todos se fiam dos juízes, no liberal [país]; e quem se fia dos juízes – entre nós?
(Artigo publicado na «Águia», Junho 1917).
António Sérgio - A Propósito dos Ensaios Políticos de Spencer. In «Ensaios». 2.ª ed. t. II, p. 181-204.
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Sunday, June 17, 2007
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