Os governos nascidos da grande luta que há meio século se peleja entre o absolutismo e a democracia conservaram, por uma estranha contradição, os vícios administrativos que primeiro deviam ter extirpado. Vencedores da concentração do poder feita pela monarquia, eles não quiseram prescindir desta arma terrível, e dar às povoações oprimidas e decadentes a vida própria que lhes faltava. Os resultados de semelhante política são, em toda a parte, funestos. As capitais crescem desmedidamente à custa da substância das províncias. Nestas as principais cidades absorvem toda a riqueza dos campos. O Estado tributa e consome; o país contribui e definha. O expediente dos mais simples negócios dilata-se e complica-se. O número dos empregados públicos cresce: o dos funcionários gratuitos diminui. A massa dos impostos, repartida por quem não sabe o que eles custam, é prodigamente gasta. A menor concessão para objecto de utilidade local considera-se especial favor, e às vezes serve de instrumento para corrupção das consciências. A acção governativa resume-se toda nas pessoas dos ministros, que a não podem, nem sabem exercitar. A iniciativa para os melhoramentos de maior vulto depende deles, e é, algumas vezes a seu pesar, prejudicada. O amor da localidade esfria e morre á míngua de incentivo e animação. As famílias poderosas desertam as aldeias. A vida independente da agricultura é trocada e vendida pelo furor dos empregos. A povoação rural escoa-se para as oficinas das cidades, e deixa inculta a terra de seus maiores. O povo sem escolas, sem comícios, sem discussão, sem leitura fica privado de educação política. O egoísmo enraíza-se no coração de todos; o amor da pátria e da humanidade é um sentimento desconhecido. Assim exangue, a sociedade existe à merca da tirania. Derrocados os elementos de resistência a quaisquer planos liberticidas uma facção insignificante, mas audaz pode ditar a lei a todo um país. A centralização absoluta, cega, omnipotente é, pois, como acabamos de mostrar, um gravíssimo mal. Mas estará o remédio no extremo oposto, na descentralização também absoluta, anárquica, caprichosa? Vejamos.
A reacção contra o sistema centralizador, aliás tão justificada e necessária, tem, como todas a reacções, os seus excessos, A centralização trouxe à sociedade europeia grandes bens. Tais foram a unidade das leis, a generalidade de tributos, a igualdade de pesos e medidas, e a abolição de uma infinidade de barreiras, que impediam o comércio interior dos povos. O regime da descentralização, levado ao seu ponto de partida ou às suas extremas consequências – a completa independência da localidade – produziria péssimos efeitos, retardando aqui, embaraçando acolá, auxiliando raras vezes a marcha uniforme, progressiva, constante da civilização. Que força a não ser a da lei comum poderia dominar e transformar os movimentos desencontrados, irregulares e bruscos de milhares de rodas postas ao mesmo pé? Ambos os sistemas que acabamos de comparar fizeram o seu tempo, e estão julgados pela história. Quanto a nós o caminho, que convém seguir, dista tanto de um, como de outro extremo. A organização de grandes municípios bem regidos, bem dotados, bem fomentadores da indústria, bem zelosos pela educação pública será porventura, nesta primeira quadra, o recurso eficaz a que têm de socorrer-se povos e governos.
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… O governo, qualquer que seja a sua cor, provavelmente já vista e conhecida, há-de objectar, entre outros motivos, o enfraquecimento da autoridade central e o desfalque nas rendas do tesouro. Não procuraremos consolá-lo nesta parte, porque nenhuma consolação vale a pena para quem perde autoridade e dinheiro, por pequena ou pouco que seja. Diremos, todavia, que o país tem direito a ser bem administrado, e que, quando os governos não querem, não sabem ou não podem fazê-lo, razão lhe assiste para, por suas mãos, satisfazer esta necessidade. Acrescentaremos mais, que o país, que sua, lavra, fabrica e do produto de tudo isto enche as arcas do tesouro, deve ser convertida, diante dos próprios olhos, em objectos de imediato interesse, uma certa porção da própria substância. É tempo de acabar com o sistema administrativo que faz da solução do mais simples negócio uma teia de aranha inextricável. Deixe-se descansar essa empregadoria ignorante e corrupta, que nos gabinetes dos altos funcionários decide, sabe Deus como e porque, de coisas que não conhece. Chame-se a parte inteligente, zelosa e trabalhadora do país ao exame e deliberação das questões que lhe tocam de perto. E já que os governos e as assembleias supremas ocupam o tempo em lutas estéreis ou transigências vergonhosas¹, já que em nada mais se pensa senão em preencher as fileiras do exército e os quadros das secretarias, já que o grosso das rendas do tesouro é absorvido por quem não acrescenta com um real a fortuna pública, já que tudo isto assim é e assim continuará por desgraça nossa, durante alguns anos, cuide o país da sua abandonada, da sua miserável administração municipal. Para esta grande, comum e urgentíssima empresa, em que podem e devem dar-se a mão os homens honestos de todos os partidos, associe o país os seus elementos de energia moral e patriótica. Levante os olhos para as suas montanhas nuas de arvoredo, para as suas charnecas incultas, para os seus rios obstruídos e para os seus caminhos intransitáveis. Observe a imoralidade campeando altiva no seu trono de mortes, roubos e violências, a ignorância dos povos quase tão densa e escura como nas idades bárbaras, e os sofrimentos das classes pobres tão agravados e esquecidos, como se os membros delas não fossem irmãos nossos. Considere a atrasamento, a rusticidade, a falta de todo o conforto de civilização, que se nota no interior das províncias e mesmo à porta das cidades. E depois de ver-se neste espelho tristíssimo, e ainda mais que tão fiel, levante o país a sua voz poderosa, se a indignação lha não sufocar e reclame, ao menos sequer na administração municipal, o pleno gozo dos seus direitos e posse pacífica da sua herança.
¹ Este capítulo foi escrito em fim de 1852. Quão mais desanimadoras e acerbas deveriam ser as considerações que acima se lêem, se a política de hoje as inspirasse!
Henriques Nogueira, J. F. - O Município no Século XIX. Lisboa: 1856. p. 3-14.
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Thursday, June 14, 2007
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